Frank Viana Carvalho, D. Filosofia
Uma retrospectiva histórica da Alfabetização em Língua Portuguesa no Brasil
O processo de alfabetização em língua portuguesa seguiu caminhos peculiares ao longo da história brasileira. Não temos relatos mais detalhados desse período, a não ser dos primeiros a trabalhar oficialmente com a alfabetização em nossas terras, os jesuítas.
1549 - 1880
Eles eram padres da Igreja Católica que faziam parte da Companhia de Jesus, criada logo após a Reforma Protestante (século XVI) como uma forma de barrar o avanço do protestantismo na Europa e no mundo. Esta ordem religiosa foi fundada em 1534 por Inácio de Loyola justamente no contexto da Contra-Reforma Católica. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549, com a expedição de Tomé de Souza.
Dentre seus objetivos, havia o de construir e desenvolver escolas católicas em diversas regiões do mundo e isso incluía o Brasil.
Nas escolas jesuítas funcionavam alguns princípios que se mantiveram por mais de duzentos anos: unificação do método de ensino por todos os professores, ênfase na concentração e na atenção silenciosa dos alunos e um processo de ensino ligado à repetição e memorização dos conteúdos apresentados. Todos estes princípios se sobressaem na “Ratio Studiorum” (Ordem dos Estudos), síntese da experiência pedagógica dos jesuítas, composta de normas e estratégias, que visavam à formação integral do homem, de acordo com a fé e a cultura católica daquele tempo.
Estes princípios irão se manter por muito tempo, mesmo após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1760, inculcados na maneira docente de se relacionar e ensinar conteúdos aos alunos. Ao que tudo indica, os alunos que se tornaram professores após se formarem nas escolas jesuíticas (ou jesuítas) mantiveram a forma e o espírito da atuação de seus predecessores. A alfabetização (desde a chegada dos jesuítas, no início do período do Brasil colônia, até perto do final do segundo império) seguirá de perto este modelo, onde a máxima medieval parecerá ser a única realidade: la letra com sangre entra.
1880 – 1940
No final da década de 1880, o professor da Escola Normal de São Paulo, Antonio da Silva Jardim, divulga no Brasil uma novidade pedagógica que estava fazendo sucesso em Portugal: a Cartilha Maternal, da autoria do poeta português João de Deus (a primeira edição foi em 1876[1]). E qual era a razão do sucesso dessa cartilha? Seu ‘método’ revolucionário de alfabetização.
A Cartilha Maternal (A Arte da Leitura) apresentava pela primeira vez em língua portuguesa uma proposta de ensino através do método analítico, pois partia da ‘palavra’ (palavração), ao contrário dos métodos sintéticos anteriormente utilizados, que partiam das letras (soletração) e das sílabas (silabação).
Cabe ressaltar aqui que os métodos sintéticos partem das unidades menores, as letras ou as sílabas em direção às palavras, depois às frases e finalmente ao texto (das partes para o todo). Já os métodos analíticos partem das unidades maiores - o texto, as frases ou a palavra - em direção às sílabas e letras (do todo para as partes).
A obra de João de Deus estabelecia outros princípios de ensino:
1) O alfabeto era ensinado por partes:
a) primeiro as vogais;
b) depois os encontros vocálicos básicos.
2) O ensino das regras tinha duas premissas:
a) complicação crescente;
b) generalidade decrescente.
Visando dar a sua contribuição a esse assunto, o brasileiro Thomaz Paulo do Bom Sucesso Galhardo[2] apresentou em 1880 a Cartilha da Infância. Nesta, ele focaliza a proposta para o ensino da leitura e escrita de acordo com o método da silabação. Para ele, havia três métodos para a alfabetização: um ‘antiguíssimo’, a soletração, um moderno, a silabação e um moderníssimo, a palavração. Para ele, a realidade brasileira não permitia ainda a utilização da palavração. Seu trabalho foi bem aceito e sua cartilha chegou à 233ª edição em 1992.
Na mesma época, uma nova geração de normalistas formadas pela Escola Normal de São Paulo começou a defender os métodos analíticos em detrimento da soletração e da silabação. Temos então a partir dessa época, de acordo com Mortatti[3], o início do embate entre os métodos sintéticos e analíticos.
Primeiro Momento – 1876 a 1890
Os professores formados pelas Escolas que receberam a influência da Cartilha Maternal defendiam o método analítico da palavração e se consideravam modernos em contraposição aos que defendiam a soletração ou a silabação (esta defendida por Galhardo). Era o embate da Palavração versus Soletração e Silabação.
Segundo Momento – 1890 a 1920
Como o professor Galhardo e outros haviam colocado o método silábico como um caminho moderno, os alfabetizadores se dividiram. Houve uma disputa ainda mais acirrada entre os que defendiam o novo método da palavração e o grupo que defendia o método sintético da silabação. Praticamente não havia defensores da soletração neste momento. Os defensores do método analítico se estranhavam: havia os que se consideravam ‘modernos’ e os que se consideravam ‘mais modernos’. Essa disputa ‘interna’ acontecia em razão da escolha do tipo de ‘todo’ do qual se deveria partir na alfabetização: “a palavração, a sentenciação ou a historieta”[4].
Terceiro Momento – 1920 – 1940
Neste momento surgem aqueles que defendiam caminhos mistos (método analítico-sintético ou sintético-analítico) disputando espaço com os defensores do método analítico. Nesse tempo ocorre também, em função de variados fatores, uma relativização da importância dos métodos. Este ‘esfriamento’ da disputa parecia fazer sentido na época, pois julgavam haver coisas mais importantes em jogo no momento da alfabetização, do que necessariamente o método.
Quarto Momento – 1980 – 2001
Com as propostas construtivistas trazidas por Emília Ferreiro, os partidários de sua ‘revolução conceitual’ se posicionam frontalmente contra os defensores dos métodos tradicionais. Estes últimos não se defenderam no campo teórico, mas sua atuação silenciosa foi e é forte, sobretudo na utilização dos métodos mistos. A ‘onda’ construtivista percorreu o país e tornou-se uma ‘modernidade’ ser ‘construtivista. Até mesmo os PCNs (1996-1998) refletiram a forte influência do modelo. No entanto, dificuldades na aplicação da proposta fizeram e fazem com que muitos docentes ‘construtivistas’ utilizem às escondidas métodos sintéticos para alfabetizar seus alunos.
Quinto Momento[5] – 2002 - 2006
Fruto de pesquisas quantitativas sobre o rendimento dos alunos brasileiros em avaliações internacionais e da adoção de métodos oficiais de alfabetização em países ricos (Estados Unidos, Bélgica, Inglaterra e França, entre outros), começou a surgir ainda no final dos anos noventa (séc. XX) fortes críticas ao modelo construtivista de alfabetização em vigor no Brasil. Boa parte desses críticos entrou em defesa do método fônico[6], alegando ser este um caminho mais eficiente e eficaz para a realidade brasileira. Contudo, vários teóricos construtivistas reagiram energicamente, atacando seus oponentes e alegando que o construtivismo não é um método e que realidades externas não devem servir de parâmetro para o Brasil.
Sexto Momento – 2006
Fruto de reflexões e análises sobre as críticas, o MEC começou a publicar a partir de 2003 materiais nos quais se vê, seja nas entrelinhas, seja abertamente, uma clara ‘permissão’ para a convivência ‘pacífica’ de diferentes tendências metodológicas no processo de alfabetização. Se considerarmos que o "método" Paulo Freire, nosso mais famosos educador, é um "método" silábico, embora, é claro, de ampla conscientização social e política e por esse caminho muitos aprenderam, porque negar as vantagens advindas de modelos como esse? O governo federal estabeleceu através de projetos, portarias e leis que todas as crianças devem ser alfabetizadas até os oito anos e isso criou um novo desafio para as escolas. Como a maioria dos docentes fez uso de caminhos mais ecléticos, a discussão e os debates diminuíram de intensidade, mas o problema da alfabetização insuficiente continua a rondar o país em 2015...
Referências
[1] A Cartilha de João de Deus se difundiu de tal forma em Portugal, que em pouco mais de seis meses de edição já havia mais de duzentas escolas utilizando a Cartilha e em 1888 o governo de Portugal tornou-a método oficial em todo o país. (Mortatti, p. 59).
[2] Thomaz Galhardo (1855-1904) foi aluno da primeira turma da Escola Normal de São Paulo. Dedicou-se ao ensino público onde fez brilhante carreira, ocupando os mais altos e honrosos cargos no magistério paulista. Além de Cartilha da infância, escreveu dois livros de leitura, publicados pela Livraria Francisco Alves (RJ) e vários livros didáticos que foram usados desde o século XIX até o fim do século XX. Um de seus livros, Monografia da letra A, foi citado por Rui Barbosa em sua crítica à redação do Código Civil. Além de professor, foi promotor público.
[3] MORTATTI, Maria do Rosário Largo. Os sentidos da Alfabetização. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.
[4] Mortatti, p. 26.
[5] , Maria do Rosário Mortatti para a sua análise no quarto momento, até porque o livro dela foi editado em 1999. A partir daqui, apresentamos exclusivamente o nosso ponto de vista sobre o assunto.
[6] Os livros didáticos dos autores que preconizam o método fônico tentam ‘contextualizar’ o processo de alfabetização, lançando mão de pequenos textos.
O processo de alfabetização em língua portuguesa seguiu caminhos peculiares ao longo da história brasileira. Não temos relatos mais detalhados desse período, a não ser dos primeiros a trabalhar oficialmente com a alfabetização em nossas terras, os jesuítas.
1549 - 1880
Eles eram padres da Igreja Católica que faziam parte da Companhia de Jesus, criada logo após a Reforma Protestante (século XVI) como uma forma de barrar o avanço do protestantismo na Europa e no mundo. Esta ordem religiosa foi fundada em 1534 por Inácio de Loyola justamente no contexto da Contra-Reforma Católica. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549, com a expedição de Tomé de Souza.
Dentre seus objetivos, havia o de construir e desenvolver escolas católicas em diversas regiões do mundo e isso incluía o Brasil.
Nas escolas jesuítas funcionavam alguns princípios que se mantiveram por mais de duzentos anos: unificação do método de ensino por todos os professores, ênfase na concentração e na atenção silenciosa dos alunos e um processo de ensino ligado à repetição e memorização dos conteúdos apresentados. Todos estes princípios se sobressaem na “Ratio Studiorum” (Ordem dos Estudos), síntese da experiência pedagógica dos jesuítas, composta de normas e estratégias, que visavam à formação integral do homem, de acordo com a fé e a cultura católica daquele tempo.
Estes princípios irão se manter por muito tempo, mesmo após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1760, inculcados na maneira docente de se relacionar e ensinar conteúdos aos alunos. Ao que tudo indica, os alunos que se tornaram professores após se formarem nas escolas jesuíticas (ou jesuítas) mantiveram a forma e o espírito da atuação de seus predecessores. A alfabetização (desde a chegada dos jesuítas, no início do período do Brasil colônia, até perto do final do segundo império) seguirá de perto este modelo, onde a máxima medieval parecerá ser a única realidade: la letra com sangre entra.
1880 – 1940
No final da década de 1880, o professor da Escola Normal de São Paulo, Antonio da Silva Jardim, divulga no Brasil uma novidade pedagógica que estava fazendo sucesso em Portugal: a Cartilha Maternal, da autoria do poeta português João de Deus (a primeira edição foi em 1876[1]). E qual era a razão do sucesso dessa cartilha? Seu ‘método’ revolucionário de alfabetização.
A Cartilha Maternal (A Arte da Leitura) apresentava pela primeira vez em língua portuguesa uma proposta de ensino através do método analítico, pois partia da ‘palavra’ (palavração), ao contrário dos métodos sintéticos anteriormente utilizados, que partiam das letras (soletração) e das sílabas (silabação).
Cabe ressaltar aqui que os métodos sintéticos partem das unidades menores, as letras ou as sílabas em direção às palavras, depois às frases e finalmente ao texto (das partes para o todo). Já os métodos analíticos partem das unidades maiores - o texto, as frases ou a palavra - em direção às sílabas e letras (do todo para as partes).
A obra de João de Deus estabelecia outros princípios de ensino:
1) O alfabeto era ensinado por partes:
a) primeiro as vogais;
b) depois os encontros vocálicos básicos.
2) O ensino das regras tinha duas premissas:
a) complicação crescente;
b) generalidade decrescente.
Visando dar a sua contribuição a esse assunto, o brasileiro Thomaz Paulo do Bom Sucesso Galhardo[2] apresentou em 1880 a Cartilha da Infância. Nesta, ele focaliza a proposta para o ensino da leitura e escrita de acordo com o método da silabação. Para ele, havia três métodos para a alfabetização: um ‘antiguíssimo’, a soletração, um moderno, a silabação e um moderníssimo, a palavração. Para ele, a realidade brasileira não permitia ainda a utilização da palavração. Seu trabalho foi bem aceito e sua cartilha chegou à 233ª edição em 1992.
Na mesma época, uma nova geração de normalistas formadas pela Escola Normal de São Paulo começou a defender os métodos analíticos em detrimento da soletração e da silabação. Temos então a partir dessa época, de acordo com Mortatti[3], o início do embate entre os métodos sintéticos e analíticos.
Primeiro Momento – 1876 a 1890
Os professores formados pelas Escolas que receberam a influência da Cartilha Maternal defendiam o método analítico da palavração e se consideravam modernos em contraposição aos que defendiam a soletração ou a silabação (esta defendida por Galhardo). Era o embate da Palavração versus Soletração e Silabação.
Segundo Momento – 1890 a 1920
Como o professor Galhardo e outros haviam colocado o método silábico como um caminho moderno, os alfabetizadores se dividiram. Houve uma disputa ainda mais acirrada entre os que defendiam o novo método da palavração e o grupo que defendia o método sintético da silabação. Praticamente não havia defensores da soletração neste momento. Os defensores do método analítico se estranhavam: havia os que se consideravam ‘modernos’ e os que se consideravam ‘mais modernos’. Essa disputa ‘interna’ acontecia em razão da escolha do tipo de ‘todo’ do qual se deveria partir na alfabetização: “a palavração, a sentenciação ou a historieta”[4].
Terceiro Momento – 1920 – 1940
Neste momento surgem aqueles que defendiam caminhos mistos (método analítico-sintético ou sintético-analítico) disputando espaço com os defensores do método analítico. Nesse tempo ocorre também, em função de variados fatores, uma relativização da importância dos métodos. Este ‘esfriamento’ da disputa parecia fazer sentido na época, pois julgavam haver coisas mais importantes em jogo no momento da alfabetização, do que necessariamente o método.
Quarto Momento – 1980 – 2001
Com as propostas construtivistas trazidas por Emília Ferreiro, os partidários de sua ‘revolução conceitual’ se posicionam frontalmente contra os defensores dos métodos tradicionais. Estes últimos não se defenderam no campo teórico, mas sua atuação silenciosa foi e é forte, sobretudo na utilização dos métodos mistos. A ‘onda’ construtivista percorreu o país e tornou-se uma ‘modernidade’ ser ‘construtivista. Até mesmo os PCNs (1996-1998) refletiram a forte influência do modelo. No entanto, dificuldades na aplicação da proposta fizeram e fazem com que muitos docentes ‘construtivistas’ utilizem às escondidas métodos sintéticos para alfabetizar seus alunos.
Quinto Momento[5] – 2002 - 2006
Fruto de pesquisas quantitativas sobre o rendimento dos alunos brasileiros em avaliações internacionais e da adoção de métodos oficiais de alfabetização em países ricos (Estados Unidos, Bélgica, Inglaterra e França, entre outros), começou a surgir ainda no final dos anos noventa (séc. XX) fortes críticas ao modelo construtivista de alfabetização em vigor no Brasil. Boa parte desses críticos entrou em defesa do método fônico[6], alegando ser este um caminho mais eficiente e eficaz para a realidade brasileira. Contudo, vários teóricos construtivistas reagiram energicamente, atacando seus oponentes e alegando que o construtivismo não é um método e que realidades externas não devem servir de parâmetro para o Brasil.
Sexto Momento – 2006
Fruto de reflexões e análises sobre as críticas, o MEC começou a publicar a partir de 2003 materiais nos quais se vê, seja nas entrelinhas, seja abertamente, uma clara ‘permissão’ para a convivência ‘pacífica’ de diferentes tendências metodológicas no processo de alfabetização. Se considerarmos que o "método" Paulo Freire, nosso mais famosos educador, é um "método" silábico, embora, é claro, de ampla conscientização social e política e por esse caminho muitos aprenderam, porque negar as vantagens advindas de modelos como esse? O governo federal estabeleceu através de projetos, portarias e leis que todas as crianças devem ser alfabetizadas até os oito anos e isso criou um novo desafio para as escolas. Como a maioria dos docentes fez uso de caminhos mais ecléticos, a discussão e os debates diminuíram de intensidade, mas o problema da alfabetização insuficiente continua a rondar o país em 2015...
Referências
[1] A Cartilha de João de Deus se difundiu de tal forma em Portugal, que em pouco mais de seis meses de edição já havia mais de duzentas escolas utilizando a Cartilha e em 1888 o governo de Portugal tornou-a método oficial em todo o país. (Mortatti, p. 59).
[2] Thomaz Galhardo (1855-1904) foi aluno da primeira turma da Escola Normal de São Paulo. Dedicou-se ao ensino público onde fez brilhante carreira, ocupando os mais altos e honrosos cargos no magistério paulista. Além de Cartilha da infância, escreveu dois livros de leitura, publicados pela Livraria Francisco Alves (RJ) e vários livros didáticos que foram usados desde o século XIX até o fim do século XX. Um de seus livros, Monografia da letra A, foi citado por Rui Barbosa em sua crítica à redação do Código Civil. Além de professor, foi promotor público.
[3] MORTATTI, Maria do Rosário Largo. Os sentidos da Alfabetização. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.
[4] Mortatti, p. 26.
[5] , Maria do Rosário Mortatti para a sua análise no quarto momento, até porque o livro dela foi editado em 1999. A partir daqui, apresentamos exclusivamente o nosso ponto de vista sobre o assunto.
[6] Os livros didáticos dos autores que preconizam o método fônico tentam ‘contextualizar’ o processo de alfabetização, lançando mão de pequenos textos.
Um comentário:
Muito bom!
Postar um comentário