Dr. Frank Viana Carvalho (1)
Resumo
A fraqueza e o zelo se confundem nas declarações de Montaigne, procurando evidenciar um pouco da natureza humana ao revelar-se a si mesmo através deste fabuloso ensaio. Ponteado de colocações ciceronianas, ora maquiavelianas, ele inicia uma discussão que tem como pano de fundo a sua própria experiência na vida pública, que consistia, mais das vezes, em viver uma não verdade diante de todos, do que a autenticidade que ele tanto buscava.
(continuação - Final)
Porém, sua busca da honestidade, que até aqui se mostra presa à sua consciência e à sua vontade parece ceder a utilidade quando ele afirma que: “se ela [a fortuna] me houvesse chamado outrora para o serviço público e para meu ganho de crédito no mundo, sei que eu passaria sobre a razão de meus discursos para seguí-la.” É como se dissesse – cada homem tem o seu preço, a despeito de sua consciência.
“... Aqueles que dizem comumente contra o que professo, que isto a que chamo franqueza, simplicidade e espontaneidade em meus costumes, é arte e finura: antes prudência que bondade, indústria que natureza, bom senso, que boa sorte, conferem-me mais honra do que tiram.”
Parece falar aos seus críticos, talvez aqueles que o desmereceram por ele abandonar a vida pública, por não achar que ela era para ele e também parece falar para si mesmo, como se justificasse o seu proceder e quisesse explicá-lo. Para quem o olhasse com atenção, perceberia que, nas rotas tortuosas da sua aparente contradição existe um movimento natural, que não pode ser delimitado a uma regra.
“... O que se assenta melhor a alguém é o que lhe é mais natural.” (Id maxime quemque decet quod est cujusque suum máxime - Cícero, I, 31).
Suas idas e vindas ao público e privado mostram quão diferentes eles os vê como modelo de ação e consciência. Parecia acreditar firmemente que o engodo [engano] tem o seu lugar. Na sua compreensão do mundo, ele até afirma que “há vícios legítimos, como muitas ações, boas ou justificáveis, ilegítimas.”
Mais uma vez, suas referências a Cícero são uma busca de mostrar um caminho de honestidade e da sujeição da utilidade à honestidade. Pois para ele, a justiça em si, natural e universal (seria uma referência indireta ao direito natural?), tem “regras diversas e mais nobres do que a justiça especial, nacional, condicionada à necessidade das comunidades políticas.”
“... Não temos modelo sólido e exato do direito verdadeiro e da justiça perfeita; dispomos apenas de uma sombra e de uma imagem.” (Veri juris germanaeque justiciae solidam et expressam effigeam nullam tenemus; umbra et imaginibus utimur - Cícero, III, 17)
E citando o exemplo de Diógenes, mostra que o estabelecimento do Estado e do seu tipo próprio de justiça e de lei faz estabelecer por permissão e por persuasão muitas ações viciosas, as quais, apenas o direito de Estado as justifica:
“... Há crimes instigados pelos senatus-consultos e plebiscitos” (Ex senatusconsultis plebisquescitis sclera exercentur) (Sêneca, Epístolas, XCV)
Neste ponto ele afirma que segue a linguagem comum, que faz diferenciação entre o útil e o honesto. Poderia ser diferente, já que ele apenas parcialmente parece concordar com Cícero? Em Montaigne, não parece à utilidade sujeitar-se à honestidade como vemos em Cícero: “não é lícito que o que é verdadeiramente honesto seja comparado a uma utilidade que se lhe opõe.” (Cícero, III, 350).
Ainda da traição, ele se detém no exemplo dos pretendentes ao reino da Trácia. O traidor, que matou seu oponente, foi igualmente traído por outro traidor, a mando do Estado romano. Justiça foi feita, mas com traição. A utilidade (necessidade de cumprimento da justiça romana) subjugou a honestidade (traição de alguém).
Assim, ele mostra que este tipo de ação não é para ele, como anteriormente ele já havia dito e reafirmado. Por opção e por escolha, ele manifesta repetidas vezes sua intenção de seguir a sua consciência e a sua vontade. E se fosse convidado reagiria como os lacedemônios: “podeis nos incumbir de tarefas pesadas e penosas, tanto quanto vos agradar, mas vergonhosas e desonestas, perdereis vosso tempo em nos dar.” Aqui está a sujeição da utilidade à honestidade. Sua defesa é a história, os exemplos lhe caem tão bem, que parece argumentar em função deles. Porém, sua consciência indica o caminho e este é o de realizar a sua vontade. Ele também se esconde na proteção que o seu comportamento lhe trará – aquele que contrata o traidor também o trairá.
Montaigne vê uma justificativa para a perfídia: “quando se emprega em punir e trair a [própria] perfídia.” As histórias de Jarolpec e do seu remorso depois de empregar o engano, a de Antígono ao persuadir outros a trair Êumenes, a do escravo que delatou Sulpício, o de Maomé II que mandou um oficial matar o próprio irmão e a do rei francês Clóvis que induziu três servos a traírem Canacre, mostram as conseqüências para quem serviu de instrumento de traição.
A Michel de Montaigne, mesmo para aqueles que “nada valem”, após tirarem proveito de sua falta de caráter ao promover ações tão viciosas, realizar algo que tenha algum traço de justiça, lhes serve como tentativa de aplacar sua consciência. Isto sem contar que conseguem o silêncio do instrumento de tal malefício.
Assim, se torna mais execrável, aquele que se subordina ao cumprimento de tal ação.
“... Além da vileza de tais incumbências, há a prostituição da consciência.”
Esta busca da utilização da utilidade para o cumprimento da vontade soberana do Estado encontra nos “homens perdidos” o instrumento ideal para a execução daquela que pode ser considerada “tarefa tão útil quanto pouco honesta.” Embora, às vezes, Montaigne permita que a utilidade tome o seu curso, ele não deixa de caracterizar a vileza dos atos e a falta de honestidade presente neles. Para ele, a lei “é escrava do interesse público” , e entenda-se público por aqueles que governam.
Os exemplos seqüenciais são pesados e difíceis, dada a sua natureza, mas a citação deles por Montaigne, demonstra que ele queria levar o assunto com profundidade: é o caso da filha de Sejano (violentada antes de ser morta, porque uma virgem não poderia sofrer a pena). (Tácito, Anais, V, 9-10). Do rei Amurat I (que “ordenou” um parricídio para punir o parricídio que ele sofrera). Dos infelizes que enforcavam os seus amigos para garantir a própria vida. São exemplos extremos e que mostram como a utilidade se põe a serviço do poder para a execução da sua vontade.
“... Mas que evite procurar pretexto para o seu perjúrio.” (sed videat ne quaeratur latebra perjurio) (Cícero, III, 29)
O príncipe, para Montaigne, tem defesa de suas ações, podendo excusar-se de seus erros afirmando que deixou de realizar o seu dever por razões superiores. Vício, certamente não: é o infortúnio. Mas se ele de fato foi pressionado (ou por uma circunstância urgente ou por um acidente relativo à exigência de Estado), era mister fazê-lo. Mas se o fez sem sofrer (sem pesar, não lhe custou), é sinal de que sua consciência está em mau estado.
Aqui vemos a ênfase que permeia todo o texto – a preocupação de Montaigne para que o homem se mantenha fiel aos preceitos de sua consciência. Inclusive o príncipe. Mas mesmo aquele que titubeia, não receberia menos apreço por parte de Montaigne.
“... Nós não podemos tudo.”
Em casos extremos, para ele “é preciso freqüentemente, como a última âncora, confiar a proteção de nossa nau à condução do céu.” Ou seja, a fé é o último recurso face a coisas e atitudes que colocam em risco “a sua própria salvação.” E se assim agir, seguindo com serenidade e convicção os ditames da consciência, não deveria esta pessoa esperar que o Onipotente interceda e tenha misericórdia?
“... São exemplos perigosos, exceções raras e malsãs às nossas regras naturais. É preciso ceder, mas com grande moderação e circunspecção.”
O trabalho de Montaigne ao trazer-nos todos estes exemplos é colocar-nos face a nossa vulnerabilidade diante destes casos extremos. Somos traídos por nossa consciência ao fazermos avaliações e julgamentos com muita facilidade. Colocar a utilidade acima da honestidade resulta tão perigoso quanto ignorá-la no serviço público. A “moderação e circunspecção” é que devem orientar as ações fruto da reflexão da consciência e decisões da vontade.
Os exemplos anteriormente aplicados por Montaigne mostraram o fim dos executores da traição. Mas na história de Timoleão, ele mostra um caso diferente. A oportunidade que Timoleão teve de resgatar a sua justificação foi enfrentando dificuldades e asperezas, as quais ele tinha que vencer, pois do contrário sua sentença era certa.
Mas o exemplo do senado romano (poder público), que com o pretexto de aumentar a sua receita muda o seu veredicto em relação a uma sentença anteriormente dada, indigna Montaigne, que fala: “horrível imagem de justiça!” E “punimos os [homens] privados por terem acreditado em nós.” É o Estado a sobrepor-se ao homem e esmagando os seus direitos (naturais) sob a razão (soberana) do Estado.
A revelação máxima, a meu ver, da consciência de Montaigne empurrando-o para o cumprimento do dever (honestidade) é o exemplo dos ladrões que o prendem e só o libertam sob o juramento de que pagará o resgate:
“... Enganamo-nos ao dizer que um homem de bem estará desobrigado de sua palavra sem pagar, quando estiver livre de suas mãos. De modo algum.”
Visitar Montaigne é visitar a nós mesmos no máximo que nossa razão nos permite. Nesta busca o que se encontra é uma revelação de nós mesmos – o que sabemos, e quão pouco sabemos acerca de nós mesmos, nossas incoerências e nossas imperfeições.
(1) Frank Viana Carvalho, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo - FFLCH (Doutorado SW [CNPq] na Université François Rabelais, França), mestre em Filosofia (FFLCH-USP), mestre em Educação (UNASP), Especialista em Psicologia da Adolescência (Bracknell – Inglaterra) é professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – SR.Referências:
01 Nonchallamment – Tambem traduzido por: desacaloradamente, tranquilamente, serenamente
02 Curiesement – Tradução: compenetradamente, com cuidado; cuidadoso; forjado, fingido.
03 “É doce, quando sobre o vasto mar os ventos agitam as águas, assistir da margem ao sofrimento do outro.”
04 MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Essays. p. 79.
05 Idem
06 Idem.
07 Idem.
08 Naifveté – Tradução: candura (Sérgio Malta); franqueza (Sérgio Milliet)
09 Liberdade no falar
10 Essays, p. 81.
11 Idem.
12 “Isso não é tomar o caminho do meio, mas sim, tomar nenhum caminho. É esperar o acontecimento para colocar-se ao lado da fortuna.” Tito Lívio, XXXII, 21.
13 Essays, p. 84.
14 Idem.
15 Idem.
16 Essays, p. 85. (Conforme Plutarco – Da Curiosidade, IV).
17 Idem.
18 Idem.
19 Idem.
20 Essays, p. 86.
21 Essays, p. 87.
22 Idem.
23 Idem.
24 Essays, p. 89.
25 Essays, p. 90.
26 Essays, p. 92.
27 Idem.
28 Idem.
29 Idem.
30 Essays, p. 93.
31 Essays, p. 95.
32 Idem.
Fonte da Imagem: guardian.co.uk