segunda-feira, 21 de julho de 2008

Metafísica, ateísmo e ceticismo




Um outro argumento apresentado pelos neo-ateus em sua tentativa de negar a existência de Deus é o da ‘não aceitação’ de argumentos metafísicos, uma vez que, de acordo com os ateístas, a não ser por este caminho que é sempre indireto, você não pode ‘provar’ a existência de Deus. E mais, para eles, argumentos metafísicos não têm base científica. Um exemplo simples: é como se um ateu pedisse a um teísta que lhe mostrasse ‘Deus’ para que assim fosse provada a sua existência. Como resposta ouvisse do teísta que não é possível ‘mostrar’ Deus, mas que basta ‘acreditar’ e ter ‘fé’, e então será possível ‘ver’ Deus de diversas maneiras.

Embora pareça, este não é um argumento simplista dos neo-ateus. Não chega a ser um argumento ‘sofisticado’, mas para os céticos é um ‘excelente’ argumento. Vale lembrar que em filosofia o ceticismo se difere do ceticismo científico. Isso porque a necessidade de evidências demonstráveis no aspecto material ou físico no mundo da ciência (como suporte a uma teoria) é mais evidente do que outras áreas. É verdade também que a ciência é ampla e não podemos colocar no mesmo nível de exigência de comprovação a ‘física teórica’ e os experimentos com medicamentos na área da ‘saúde’. Talvez por isso, muitos cientistas atravessam apressadamente em seus conceitos a fronteira do mundo da ciência e a transpõem para a metafísica.

Para responder este argumento precisamos nos deter em algumas considerações metafísicas.

Vamos supor que exista algo em nosso planeta que nós ainda não descobrimos. Tomemos por exemplo uma rara orquídea em uma floresta tropical. O fato de não a havermos descoberto e não termos conhecimento dela não quer dizer que ela não exista. Apenas não chegamos a ela ainda. Pode ser que alguém afirme que jamais seremos capazes de encontrar a tal flor porque ela não existe. Estaria ele certo? Claro que não, pois a flor existe e está lá, embora ainda não a tenhamos encontrado. Se chegássemos a ela não precisaríamos de nada além de nossos olhos para ‘comprovar’ a sua existência.

Contudo, imaginemos que a flor se encontra em um lugar inacessível, fortemente protegido por leis ambientais, e ainda que se passem séculos e milênios da história, nunca encontraremos a tal orquídea. Observe que ela ainda estará lá: ela existe, só que não chegamos ou chegaremos até ela. Não podemos negá-la por que não fomos capazes de chegar até ela.

Avancemos um pouco mais.

Nos últimos anos e décadas, o ser humano inventou diversos equipamentos e aparelhos que nos possibilitaram ‘ver’, ‘enxergar’, ‘analisar’, ‘perceber’ e ‘conhecer’ várias coisas do mundo natural que antes nos eram ‘invisíveis’ e por isso, ‘não existiam’. O desenvolvimento científico nos deu ‘aparelhos de raios X’, ‘radares’, ‘estetoscópios’, ‘microscópios eletrônicos’, ‘radiotelescópios’, ‘telescópios’, ‘espectômetros’ e uma enorme variedade de outros artefatos e máquinas que nos permitem ‘ver’, conhecer e compreender melhor o mundo à nossa volta. È muito provável que muitos do passado se mostrassem céticos se fossem confrontados com a simples informação de que seria possível ‘ver através do corpo humano’ ou de que ‘aquela não é uma estrela, mas um aglomerado’, ou ainda que ‘dentro do átomo existe um pequeno mundo à parte’. Muitos homens do passado diriam que tal coisa é impossível, que não faz sentido o que estamos falando. Ainda haveria aqueles que diriam que isso jamais ocorreria, pois não existe nada além do que vemos e conhecemos.

No ponto de vista contemporâneo, acreditamos que no futuro o homem inventará artefatos com tantos recursos tecnológicos que a simples menção do que eles serão capazes de fazer provocará arrepios em várias pessoas. Podemos até desacreditar ou duvidar de tal coisa ou capacidade. Mas o futuro se encarregará de provar que estávamos equivocados.

Avancemos para algo um pouco mais complicado.

Suponhamos que exista algo em nosso planeta que ainda não vimos e não conhecemos. Imagine que, infelizmente, a despeito de toda a nossa tecnologia do presente e mesmo do futuro, que nunca seremos capazes de descobri-lo, pois não seremos capazes de ‘inventar’ a tal máquina ou tecnologia que detecte ou descubra esse algo. Mas ele existe e continua ali, mesmo sem termos meios de o descobrir ou detectar. Pode ser que muita gente diga que não, que tal coisa não existe – mas sabemos que existe, só não somos capazes de ‘vê-la’ ou ‘percebê-la’. Em outras palavras, é possível que alguma tecnologia ‘detecte’ esse ‘algo’, mas não seremos capazes de construir um artefato tecnológico para essa tarefa.

Mas podemos ir além.

Imagine uma coisa ou algo que, mesmo inventado um aparelho ou artefato tecnológico que o detecte, o nosso aparelho corporal (ou seja, nossos sentidos) não seja capaz de ‘ver’, ‘perceber’, ‘sentir’ ou mesmo ‘interpretar’ os dados que se nos apresentam. Simplesmente não chegaremos ao conhecimento direto daquilo e isso não quer em absoluto dizer que esse algo não existe. Aqui o problema não é como chegar até esse ‘algo’, mas em ter condições de ‘percebê-lo’. Mesmo se estivéssemos diante desse ‘algo’, não seríamos capazes de ‘alcançá-lo’.

Esses passos dados anteriormente procuram racionalmente e de forma simples mostrar que não se pode negar a existência de alguma coisa ou algo apenas pelo fato de que não podemos vê-la ou senti-la.

Na ciência, muitas ‘descobertas’ se deram a despeito da limitação dos meios de observação. Por meios indiretos de observação, fórmulas e teorias foram construídas e muitas afirmações se fizeram prevendo tal e tal coisa ou fenômeno. É claro que houve muitos mesmo entre os cientistas, que negaram a validade dessas teorias e depois foram confrontados com os ‘resultados’ efetivos ‘ou conseqüências’ diretas das previsões do modelo teórico.

E então, esses resultados mudaram a sua forma de pensar? Nem sempre, alguns não se deram por satisfeitos e continuaram a negar, mesmo contra as ‘comprovações’ de natureza direta ou indireta.

Seriam eles céticos? É possível continuar duvidando sempre?

O ceticismo absoluto é impossível, uma vez que ‘duvidar de tudo e não acreditar em nada’, não deixa espaço para uma experiência ou vivência racional. Em algum nível, seja elevado ou baixo, todos nós somos ‘convidados’ cotidianamente a ‘acreditar’, ‘crer’ e ‘confiar’ nas informações que recebemos em nossa interação uns com os outros, com o mundo que nos cerca e até conosco mesmo, para ‘vivermos’. O ceticismo absoluto nega a si mesmo.

Para Truzzi, o verdadeiro ceticismo filosófico é duro enquanto duvida e questiona, mas diante de argumentos lógicos e racionais abre caminho para possibilidades. Ao contrário, o pseudo-cético mostra sempre “a tendência de negar, ao invés de duvidar; utiliza padrões de rigor acima do razoável na avaliação do objeto de sua crítica; realiza julgamentos sem uma investigação completa e conclusiva; mostra tendência ao descrédito, ao invés da investigação; usa do ridículo ou de ataques pessoais para com seus oponentes; apresenta evidências insuficientes para a descrença; tenta desqualificar os proponentes de novas idéias taxando-os pejorativamente de 'pseudo-cientistas', 'promotores' ou 'praticantes de ciência patológica'; parte do pressuposto de que suas críticas não tem o ônus da prova, e que suas argumentações não precisam estar suportadas por evidências, mas a de seus opositores sim; age da mesma forma que aqueles que critica ao apresentar contra-provas não fundamentadas ou baseadas apenas em plausibilidades; sugere que evidências não convincentes são suficientes para se assumir que uma teoria é falsa e, por último, tende sempre a desqualificar 'toda e qualquer' evidência, seja ela boa ou ruim”.[1] .

Os céticos estão espalhados por todos os campos do conhecimento e é provável que os críticos do teísmo ou da teologia talvez sejam mais enfáticos em seus argumentos. Mas eles já se mostraram presentes também na ciência e na tecnologia. O físico ganhador do Nobel, Max Planck, observou em seu livro The Philosophy of Physics (1936) o seguinte: “uma importante inovação científica raramente faz seu caminho vencendo gradualmente e convertendo seus oponentes: raramente acontece que Saulo se torne Paulo. O que realmente acontece é que os seus oponentes morrem gradualmente e a geração que cresce está familiarizada com a nova idéia desde o início”. Mas os céticos tentam se prevenir. É como disse o famoso astrônomo Carl Sagan, conhecido pelo seu ceticismo: “você deve manter sua mente aberta, mas não tão aberta que o cérebro caia”.

Não se pode negar a lógica do raciocínio exposto acima. Contudo, para acreditar em algo que não se vê, seja pelas nossas limitações, seja porque ainda não chegamos até elas, ou por algum outro motivo, o caminho de fato passa pela confiança ou crença. Alguns chamariam mesmo de fé. Quando a ciência, em função de suas teorias, acredita em algo que não pode provar diretamente, os cientistas não chamam isso de fé. Para eles, as próprias teorias passam a ser os pilares desse conhecimento.

O que sabemos é que não é completamente certo negar a existência de um Ser apenas porque não o vemos ou não o sentimos.

Os céticos mais radicais poderão discordar dessa linha de raciocínio. Em seu livro A Caixa Preta de Darwin, Michael Behe conta de um cientista conhecido seu, que afirmou que ainda que visse a estátua centenária de um anjo mover os braços, não acreditaria tratar-se de um milagre.

Se abraçarmos o ceticismo com tal força, nem os fatos escancarados à nossa frente nos farão mudar de opinião.

Contudo, acho que a postura equilibrada não se encontra nem na crença cega, nem no ceticismo absoluto. O filósofo cético David Hume, tentando buscar o caminho do equilíbrio, afirmou que “não temos a opção de viver de acordo com essa percepção das coisas: a razão é escrava das paixões”. Na conclusão de seu pensamento, ele concluiu que “as escolhas que fazemos presumirão que há conexões que somos incapazes de provar”.[2]

[1] Marcello Truzzi, On Pseudo-Skepticism" Zetetic Scholar (1987) No. 12/13, 3-4
[2] MAGEE, Bryan. História da Filosofia. São Paulo: Loyola, 1999, p. 115.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Neo-ateus

Os neo-ateus têm tentado apresentar argumentos que, segundo eles, são suficientes para demonstrar a não existência de Deus e os malefícios da religião. Entretanto, seus argumentos demonstram pouco conhecimento de filosofia da ciência e especialmente, de metafísica. O grande problema dos neo-ateus, dos quais Dawkins e Dennett são expoentes, é acreditar que ‘ciência é igual a verdade’, quando na realidade, ‘científico’, é apenas o que segue determinados padrões metodológicos aceitos pela comunidade científica de uma determinada época. Vale observar que a própria ciência se encarregou diversas vezes de descartar aquilo que era tido como verdade científica. Ao criticar a religião, acabam agindo como os maus religiosos – crêem que apenas com eles está a verdade. Como dizia Albert Einstein: “o homem de ciência é um filósofo ruim”[1].

Em realidade, a maioria dos argumentos apresentados é contra a religião estabelecida. Vamos aos principais e um a um, observemos como carecem de uma análise crítica de maior profundidade.

Segundo Dawkins e muitos de seus correligionários, se não houvesse religião, não haveria nenhum homem-bomba, não ocorreriam as cruzadas, não haveria o 11 de setembro, nenhuma guerra entre Israel e os palestinos, nenhum conflito na Irlanda do Norte e esta lista poderia ser multiplicada. Em outras palavras, a religião trouxe e traz muitos malefícios para a humanidade. Para o leigo, o argumento pode parecer forte, mas não é.

Richard Dawkins desconsidera várias coisas e seu raciocínio acaba por ser simplista e volta-se mesmo contra a ciência, tão defendida por ele. Ele não leva em conta que o problema está na índole do homem, na sua natureza e não na religião. Desconsidera que o homem é capaz dos atos mais sublimes e honrosos, mas também das maiores crueldades e barbaridades.

Se aplicarmos o mesmo raciocínio à ciência, diríamos que sem ela não teríamos Hiroshima e Nagasaki (a bomba atômica), não teríamos as quedas dos aviões, os destrutíveis e poderosos armamentos, as minas terrestres, o tele-sexo, o buraco na camada de ozônio, o efeito estufa, o derretimento das calotas polares, a pedofilia alimentada pela internet e é claro, a lista também poderia ser ampliada.

O argumento de que o homem faz mau uso de uma determinada coisa não é em si, suficiente para negá-la. A análise precisa ser aprofundada e isso Dawkins não faz. É claro, isso contraria as suas teses.

Se não houvesse religião não teríamos muitas obras primas do renascimento, o exemplo de David Livingstone e Madre Tereza de Calcutá, a estátua do Cristo Redentor, estátuas gigantes de Buda, missionários que visitam as prisões e tratam dos doentes de AIDS na África[2] , vidas inteiras dedicadas a servir e ajudar o próximo...

O filósofo seria simplista se não considerasse que muitos interpretam os ensinamentos religiosos à sua própria maneira e fazem valer sua vontade e interesses em detrimento do benefício da maioria. É claro que o filósofo, mais do que outros, tem consciência do mal que muitos têm feito julgando agir em nome de Deus ou da religião. Contudo, o filósofo analisa a questão por um ângulo mais elevado e vê que a natureza humana é falha e a experiência continuamente evidencia isso. Essa é uma questão 'humana' e não da religião.

Mas o problema da investigação e análise simplista não é comum aos filósofos, pois estes estão acostumados a criticar suas próprias idéias, a ir além da superfície, a questionar em busca de outras respostas ou mesmo em busca de mais perguntas. Os filósofos não vêem problemas em revisitar seus próprios conceitos.

Outro dia falarei sobre outros argumentos dos neo-ateus.

[1] There is a God: how the world’most notorious atheist changed his mind. London: Harper Collin Publishers, 2007, p. 96.
[2] Revista Época, n. 443, p. 95.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

O Contratualismo em Phillipe Du Plessys Mornay - 2007

O Contrato nas Vindiciae
Frank Viana Carvalho
O autor das Vindiciae tomará emprestado de seus antepassados a teoria contratual e a desenvolverá de tal forma, que logrará fazer um casamento entre a teoria política do poder e o conhecimento jurídico de seus dias. Para Henri Morel (1979)[1], as várias obras políticas do século XVI já haviam feito o que os historiadores do direito chamariam de “a segunda renascença do direito romano”. (p. 285). É justamente na análise desse contexto que Hauser (1963), para se referir aos domínios político e jurídico, utilizou a expressão “a modernidade do século XVI”. Uma das grandes contribuições dos monarcômacos a essa modernidade, se não a maior, foi o desenvolvimento da teoria contratual.[2] E de todos, sem dúvida, o tratado que apresentará essa teoria de forma clara e bem fundamentada, serão as Vindiciae.
Ressalte-se que Mornay não trata o tema como uma novidade. Théodore de Bèze já havia trabalhado o assunto e certamente o autor das Vindiciae deveria conhecer as referências contratuais feitas, tanto pelo autor do Le Politicien, como por George Buchanan na sua obra monarcômaca.[3] A ligação da teoria política e do direito também não era uma novidade – é suficiente lembrar como os legistas de Filipe, o Belo, haviam no começo do século XIV tentado justificar o poder supremo de seu mestre pelas fórmulas achadas no ‘Digesto de Justiniano’ (Princeps legibus solutus est ou Omnia sunt principis). Mas ainda não havia até o século XVI uma teoria que trouxesse e justificasse de forma clara, a teoria contratual nas relações entre o soberano e os súditos. Morel (1970) esclarece que havia desde a época do império romano “divergências de interpretação sobre o entendimento do poder real que duraram séculos”[4], e acrescenta a novidade de encontrar uma teoria que partisse do direito privado procurando explicar as questões do poder público: “a teoria do contrato elaborada pelos monarcômacos”. (p. 545 e 546).
Mesmo sendo uma idéia derivada, Paul Janet (1971), ao acentuar a importância da teoria do contrato exposto na obra de Mornay, vê nela “uma idéia futuramente destinada a uma singular fortuna, então totalmente nova e original”. (p. 160). Talvez, a ênfase que Janet desejava dar ao contrato nas Vindiciae era de como a idéia estava sendo apresentada. Buscando nesta parte de nosso trabalho um aprofundamento maior no texto das Vindiciae, o desenvolvimento do contrato no império romano e na Idade Média será analisado ao final desta tese.[5] Assim, partindo da idéia de Bèze, considerado como o autor do duplo contrato, Mornay desenvolverá uma teoria contratual “diferente e original, a única na verdade a se apoiar sobre um verdadeiro fundamento jurídico tirado do direito romano”. (MOREL, 1979, p. 293).

A primeira Aliança do Duplo Contrato


A fim de descrever o tipo de relacionamento que há entre Deus, o rei e o povo, as Vindiciae nos apresentam sua proposta contratualista. Há duas alianças (dois contratos) interligadas, na verdade um duplo contrato: o primeiro entre Deus, o rei e o povo, e, o segundo, entre o rei e o povo .[6] Assim é resumida a primeira aliança:

Isto ficará mais evidente pela consideração do pacto [foedus] que se fazia entre Deus e o rei – visto que Deus dignifica seus servos com o título de associados seus. Havia um duplo pacto na investidura dos reis: o primeiro entre Deus, rei e povo, no sentido em que o povo deveria ser o povo de Deus; o segundo entre rei e povo, que enquanto ele bem comandasse, bem seria obedecido. (Vindiciae, p. 12).

A primeira aliança (dentro do duplo contrato) foi definida pelas leis judaicas.[7] Referindo-se ao povo de Israel, o autor das Vindiciae escreve: “Na investidura de Joás, vimos que houve um aliança sagrada entre Deus, rei e povo ­- ou, como afirmado em outros lugares, entre o sumo sacerdote Joiada, todo o povo, e o rei –, no sentido que deveria ele ser o povo de Deus.[8] Da mesma forma, aprendemos que Josias e todo o povo fizeram uma aliança com Deus.” (idem, p. 25). Outros exemplos são apresentados e neles fica claro que, na efetivação desta primeira parte do duplo contrato (duplex foedus), o sumo sacerdote, em nome de Deus, estipulava ao rei e ao povo: se eles atentariam que Deus devia ser ‘adorado de forma pura e apropriada no reino de Judá’, isto é, se o rei governaria de tal forma que permitisse ao povo servir a Deus e o manter à lei de Deus. Então, rei e povo, como partes promissórias, prometiam manter a lei de Deus e se entregavam a um juramento solene de adorar Deus acima de tudo.
Também são apresentados exemplos de alguns juízes e dos reis israelitas Saul, Davi e Salomão. A investidura deles será exemplo para os ‘reis cristãos’ da Europa quinhentista. Como poderia esse pacto ser considerado na Europa do século XVI? Stephanus Brutus traz a idéia de que “embora a forma da igreja e do próprio reino judaico tenham mudado”, o que em princípio era limitado a Israel pode ser “difundido por todo o mundo [cristão]” – “os reis cristãos substituíram os reis judeus”.[9] E para os reis gentios, vale o mesmo princípio? Para o autor das Vindiciae, mesmo se eles não foram visivelmente ungidos por Deus, sem dúvida ainda são seus ‘vassalos’, e recebem seus poderes ‘dEle somente’, se eleitos por sorte ou por outro procedimento. Ele dá o exemplo de Ciro e Nabucodonozor como reis que, embora não tivessem tido uma investidura nos moldes da ‘aliança’ judaica, eram reis estabelecidos por Deus”.[10] Mas assim como os reis são eleitos por Deus para manter esta primeira aliança, também podem ser removidos por Ele se tentam superdimensionar o reino, se não desejam manter a lei de Deus de acordo com a aliança ou se perseguem os que desejam observá-la. Nabucodonozor, Belzazar, Alexandre o Grande, Antíoco IV Epifânio, Nero, Calígula, Domiciano e Cômodo são exemplos de governantes citados pelo autor como tendo recebido de Deus a punição. (Vindiciae, p. 22-23). Ao analisarmos esse ponto fica evidente que, sendo o rei um ‘vassalo’, em havendo conflito de interesses, é Deus quem deve ser obedecido na condição de ‘Senhor’ do feudo. O povo não é obrigado a obedecer um rei que ordena algo contrário à lei de Deus, e se obedecesse, seria rebelde.
O compromisso da primeira aliança envolve diretamente os aspectos ligados à religião e à adoração a Deus. Essa fórmula se apresentará de diferentes formas na Escritura e acabará se repetindo no conselho (princípio) dado por Jesus Cristo. ‘Dar a Deus o que é de Deus’ é cumprir esta primeira parte da dupla aliança:

Deixe que cada alma’ diz Paulo, ‘esteja sujeita a um poder maior; visto que não há nenhum, exceto o de Deus’ (...) Poder-se-ia concluir o suficiente a partir destas palavras que Deus é para ser obedecido ao invés do rei. Visto que se é para obedecer ao rei por causa de Deus, certamente esta obediência não pode ser contra Deus. Mas Paulo quis excluir toda a ambigüidade: ‘O príncipe’, acrescentou, ‘é um ministro de Deus para nosso bem a fim de fazer justiça’ Eis que segue-se mais do mesmo, porque estabelece-se que o senhor deve ser obedecido ao invés do ministro. Todavia, ele ainda não considerou isto suficiente. Disse, ‘Dai tributo a quem o tributo é devido, honra a quem a honra é devida, e teme a quem o temor é devido’; como se tivesse dito, com Cristo: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.’ O tributo e a honra são de César, e o temor é de Deus. Da mesma forma, Pedro diz: ‘Temei a Deus, honrai o rei. Os servos obedecem os mestres, mesmo os irritados.[11] (Vindiciae, p. 28-29).

Interessante é perceber que o autor das Vindiciae consegue de fato mostrar os compromissos do povo e do rei para com Deus em exemplos e passagens do Velho e também do Novo Testamento das Escrituras. Caberia ao rei manter a Igreja, a lei e a fé, zelando pelos princípios da nação. Nesse contexto, ressalte-se, também é mencionada a lei, ao apresentar os compromissos do duplo contrato relacionados às duas tábuas dos mandamentos dadas a Moisés. A primeira compreende a adoração, o respeito e a obediência a Deus, ligados assim à primeira parte da aliança; e a segunda tábua, as obrigações para com o próximo, que serão exploradas na segunda parte do duplo contrato. Elementos adicionais também serão adicionados à primeira parte da aliança ao adentrarmos na segunda questão. Nela, a proposta contratualista será melhor explicada e ampliada.
Historicamente Deus já havia firmado uma aliança com o povo de Israel – isso de uma maneira muito singular, separando-o como povo escolhido.[12] Nesse contrato primordial, notamos por um lado que todo o povo limitou-se a atentar às leis de Deus e a proteger a igreja, e por outro, que estava prestes a banir os ídolos de outras nações da terra de Canaã. Foi uma aliança que envolveu a todos [universi] antes que a nação tivesse um rei e deixa claro, para Mornay que “houve este acordo entre Deus e o povo”. (idem, p. 34). Mas esta aliança ainda não fazia parte do duplo contrato que somente seria estabelecido séculos mais tarde quando o povo de Israel passou a ser governado por reis.


O desenvolvimento do Duplo Contrato e a segunda Aliança


A partir do momento em que esse povo passou a ter reis, como as nações vizinhas, houve a necessidade de um novo pacto, na verdade, uma renovação do antigo contrato. Como se daria escolha e o estabelecimento dos reis em Israel? Quais compromissos estariam envolvidos? As Vindiciae apresentam as respostas: o rei era estabelecido por Deus, mas pelo povo e para o povo – que é o “povo de Deus”. Mornay reapresenta a questão do contrato com informações adicionais. Embora recebesse a confirmação de Deus para reinar, como foi o caso de Saul, Davi e Salomão, o rei somente seria confirmado na Assembléia do Povo, diante de todos – oficiais e povo. Ele afirma:

Isto ficará mais evidente pela consideração do pacto que se fazia entre Deus e o rei – visto que Deus dignifica seus servos com o título de associados seus. Havia um duplo pacto na investidura dos reis: o primeiro entre Deus, rei e povo, no sentido em que o povo deveria ser o povo de Deus; o segundo entre rei e povo, que enquanto ele bem comandasse, bem seria obedecido. (Vindiciae, p. 25).

O primeiro e o segundo contratos são envolvidos num só eixo de obrigações mútuas do rei e do povo para com Deus, e do rei e o povo entre si. Sendo que na primeira parte deste contrato a ênfase era religiosa e na segunda parte, civil, era necessária uma solução para a aparente contradição entre os dois tipos de investidura. Se para os israelitas não havia essa dicotomia, pois eram ‘o povo de Deus’, as Vindiciae deixam muito claro que esta distinção é importante e necessária, pois as questões civis necessitam ter um âmbito separado das questões religiosas.
E qual a necessidade da participação do povo neste ‘contrato’ e nesta ‘cerimônia’ de investidura? Estaria apenas sendo ‘notificado’ ou teria esta escolha (eleição) feita pelo povo um caráter consultivo para o seu consentimento formal? O que se vê é que a confirmação não visava apenas dar um caráter público à cerimônia, também era uma clara demonstração de que o rei ‘dependia’ das outras partes pactuantes (Deus e o povo) para ser entronizado. Ainda mais – sendo óbvio que Deus era superior ao rei e ao povo –, era necessário que o povo de alguma forma fosse igual ou superior ao rei para que o ‘consentimento’ fizesse sentido.[13] A partir daí, temos a clara explicação da importância da participação do povo:

Mostramos para qual propósito [a aliança] era ordenada entre Deus e o rei; resta explorar por qual razão foi estabelecida entre Deus e todo o povo. É absolutamente certo que Deus não o teria feito em vão. Visto que a menos que o povo ainda possuísse autoridade para prometer, e garantir sua promessa, a aliança teria sido claramente redundante. (...) Ter confiado a igreja a um homem simples e único teria sido arriscado, então ela era recomendada e confiada a todo o povo. (...) Deus queria que as pessoas permanecessem como garantia. Nessa estipulação que está em consideração, Deus, ou em Seu lugar, o sumo sacerdote, é a parte estipulante; o rei e todo o povo, a saber Israel, são as partes promissórias, ambas juntamente e, de fato, voluntariamente ligadas a uma e à mesma causa. (Vindiciae, p. 36-37).

Junius Brutus apresenta todo o povo como pactuante, associados de Deus neste caminho contratual. O autor está aqui recorrendo à noção de segurança ‘pessoal’ ou garantia, apresentadas também na lei romana sobre o contrato, e mais especificamente, nas leis da obrigação nos casos de débito, no qual duas ou mais pessoas eram conjuntamente obrigadas pela mesma quantia.[14] Destaca-se numa observação direta do texto que a estipulação era unilateral, produzindo numa parte (neste caso Deus) um direito, mas não uma obrigação, e em outra (o povo) uma obrigação, mas sem direito e, sem poder “se valer do benefício de divisão outorgada pela nova constituição de Justiniano”. (idem, p. 38).20 É verdade que as conseqüências positivas do cumprimento do contrato se refletiriam em benefícios que poderiam indiretamente ser também considerados como direitos do povo. Assim Deus, o credor, poderia demandar daquele que lhe apraz e, “é muito mais provável que seja das pessoas do que do rei”, visto que, pelo que representam, são mais do que um só. (idem, p. 37). Sendo que Deus ‘elegeu’ o novo rei, a responsabilidade do povo e do governante seriam similares no cumprimento do pacto, embora as obrigações fossem diferentes.[15] A comparação feita por Mornay avança um pouco mais:

Em resumo: assim como quando uma das partes promissórias arrisca insolvência esbanjando seus bens, a outra pode levantar uma ação eficaz contra ele, para que sofra perda por causa do erro de seu co-devedor, então, similarmente Israel pode agir contra o rei, ou o rei contra Israel, devendo qualquer um deles próprios cessar com os ídolos inteiramente, ou quebrar o aliança [foedus] de qualquer maneira, para que um deles pague a punição pelo outro. (Vindiciae, p. 38).

Essa interpretação de Mornay traz não só as responsabilidades para ambos, mas também o dever de zelar pelo cumprimento do contrato. O sentido dessa participação do povo é de ser um pactuante solidário nas obrigações civis e religiosas. Assim, o povo tinha o “direito de prometer isso”, “cumprir” e, a “responsabilidade” no cumprimento.[16] O erro de um acarretaria também sofrimentos ao outro.[17] Além disso, o rei tem uma responsabilidade adicional como líder do povo – seu exemplo é facilmente seguido por todos. Cabe a ele, pois, ser zeloso no cumprimento das duas partes do contrato, a fim de influenciar positivamente o povo. Essas duas partes compreendiam também uma interpretação das duas tábuas da lei, conforme anteriormente apresentado. A primeira tábua refere-se a Deus (os quatro primeiros mandamentos) e a segunda, ao próximo (os seis últimos mandamentos). Jesus os resume quando fala: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.” (Lucas 10: 27).
Aqui há uma aplicação direta e indireta da teoria do duplo contrato. A primeira tábua refere-se a Deus e seu relacionamento com o ser humano. Dessa forma, o primeiro contrato ocorre diretamente com Deus e esta não é uma visão restrita ao ponto de vista teológico – aqui a ênfase é política e social, numa sociedade na qual Deus era de fato participante. A segunda tábua está ligada ao relacionamento com o próximo e aí reside o segundo contrato: o rei e o povo, como seres humanos, deveriam celebrar um acordo entre si para um relacionamento positivo e de benefício mútuo. O rei não poderia exigir mais do povo do que aquilo proposto no contrato e vice-versa.
A segunda aliança do duplo contrato apresentava as obrigações contratuais entre o rei e o povo. Distingue-se nas declarações, as responsabilidades e obrigações civis, embora haja um claro entrelaçamento das questões civis e religiosas nas obrigações contratuais do povo de Israel. De uma forma geral, “o rei jurou observar a lei de Deus, e prometeu, até onde fosse capaz, preservar a igreja”. (Vindiciae, p. 54). É interessante observar que, se na segunda questão da obra de Mornay, a ênfase recai sobre a resistência ao rei que assola a religião e deseja ab-rogar a lei de Deus[18] – a qual está relacionado ao primeiro contrato. Na terceira questão, esta ênfase se desloca para a resistência ao rei que está arruinando a comunidade[19] – e isso está relacionado ao segundo contrato.


Duplex Foedus


O segundo contrato é de caráter político, situando-se no plano social e civil. No contexto das Vindiciae - e, no caso, o contexto da obra apenas reflete o momento histórico que a viu nascer – os dois contratos, ou, de outra perspectiva, as duas alianças no interior deste acordo, embora examinados de forma particular em questões diferentes, estão ligadas, formando um conjunto sistemático e coerente. Estão aí formulados os dois contratos que constituem o centro do sistema: pelo primeiro, de caráter especificamente religioso, cria-se entre o rei e o povo, partes solidárias, uma obrigação comum com Deus; pelo segundo, de caráter temporal, constitucional, determinam-se as obrigações mútuas entre o rei e o povo. E porque o rei seria obrigado a cumprir sua parte neste contrato? A primeira resposta é que ele havia sido eleito e estabelecido por Deus e pelo povo, e conseqüentemente, a segunda era a sua aceitação do cargo. O contrato trazia em si os elementos da condicionalidade – permanecesse o rei no cuidado dos interesses do povo e na defesa da fé, e ele teria o apoio do povo e a proteção divina.
Castro (1960) tenta resumir a questão: “Os reis foram estabelecidos por Deus para, juntamente com o povo, possibilitar o sólido estabelecimento do reino de Deus na terra”. Ao fazê-lo, Deus firmou um contrato com o rei e com o povo, “partes solidárias e mutuamente obrigadas”. Tal contrato tinha por objetivo fazer com que o povo se tornasse “povo de Deus”, isto é, o rei e o povo “conjuntamente prometiam tudo fazer para que as leis de Deus fossem cumpridas”. “Tal contrato não diz respeito apenas ao povo judeu, mas a todos os povos cristãos.” Assim todos os reis e povos cristãos são “solidariamente obrigados a obedecer às Leis de Deus.” (p. 91).
A despeito de haverem distinções entre questões civis e religiosas, não se pode, contudo, estabelecer uma separação mais profunda entre o primeiro e segundo contratos mencionados nas Vindiciae. No contexto da obra, o plano religioso e o político estão mesclados de forma indissociável, constituindo isso uma de suas peculiaridades mais marcantes. Este entrelaçamento reflete as circunstâncias históricas da obra de Mornay, confirmando o pensamento de Harold Laski (1953), o qual afirma que “todo sistema político é o reflexo natural de seu ambiente histórico, e não existe qualquer obra política de influência que não seja, em essência, a autobiografia de seu tempo”. (p. 10). Nisto está a virtude do autor das Vindiciae – a apresentação de uma moderna teoria contratual[20] – que vinha atender ao aspecto político, jurídico e religioso da sociedade francesa do século XVI e, ao mesmo tempo em que projetava uma futura democracia representativa, justificava as pretensões huguenotes. Kantorowicz (1998) enfatiza que,

(...) a vertente religiosa no interior da teoria política certamente foi forte durante a época da Reforma, quando o direito divino dos poderes seculares foi proclamado mais enfaticamente e quando as palavras de São Paulo, ‘Não existe poder senão o de Deus’, atingiram uma importância anteriormente desconhecida em relação à sujeição da esfera eclesiástica à esfera temporal. (p. 26).

Nessa linha, Mornay vai além e procura mostrar que as relações entre os líderes religiosos e a comunidade de fiéis, isto é, a Igreja (Eclesia), também era por vezes apresentada em termos contratuais. Essa concepção se aplica, inclusive, para a liderança da Igreja – esta é a concepção do autor das Vindiciae, que demonstra estar bem atento ao que aconteceu com relação à igreja católica, quando afirma que “os concílios de Basiléia e Constança estabeleciam diretamente que um sínodo ecumênico era superior ao papa”. (Vindiciae, p. 48).[21] Ele ainda afirma que aquele “que aceita autoridade de uma Assembléia é inferior à aquela Assembléia, embora superior aos indivíduos” que a compõem. (idem). Em Constança, uma das auto-atribuições dos fiéis era poder depor os líderes religiosos quando estes se afastassem do caminho de Deus. Para Mornay isso seria natural, pois “os reis são simplesmente vigários de Deus”. (idem, p. 9). Essa analogia do poder do concílio sobre o papa, em relação ao poder do povo sobre o rei, pode ser considerada uma evolução do pensamento escolástico. Para Tomás de Aquino, sendo Deus a fonte de toda autoridade, segundo o ensinamento paulino, o povo transmite esta autoridade a aquele que ele escolheu para governar: “Dominus et principatus, non esse de jure divino, sed de jure humano”.[22]
Para retomar a interligação que há entre os dois pactos, Mornay faz uma síntese das duas alianças no interior do duplo contrato:

Na primeira aliança [foedus] ou contrato [pactum] a piedade torna-se uma obrigação; na segunda, a justiça. Na primeira, o rei promete obedecer a Deus piedosamente; na segunda, comandar o povo justamente. Na anterior, promete cuidar da glória de Deus; na última, do bem-estar do povo. Na primeira a condição é, ‘Se observares minha lei’; na última, ‘Se retribuir a cada indivíduo seu direito’. (Vindiciae, p. 160).

A virtude dessa análise é deixar com clareza que as obrigações da primeira aliança são de natureza religiosa: ter em vista a piedade; obedecer a Deus piedosamente; cuidar da glória de Deus; observar a lei de Deus. Por outro lado, a segunda aliança estabelece os compromissos com o povo: zelar pela justiça; comandar o povo justamente; cuidar do bem-estar do povo; retribuir a cada indivíduo segundo o seu direito. Esta conjugação freqüente entre as duas tábuas da lei, entre os dois contratos e entre os aspectos religiosos e civis também se apresenta nas duas questões que tratam da resistência ao tirano.


[1] Professor na Faculdade de Direito e Ciências Políticas de Marseille na década de 1970.
[2] Vários pesquisadores da teoria política consideram os monarcômacos como ‘modernos’. Paul Janet (1971) assim os considera, quando compara as Vindiciae com os escritos da época. Jean Touchard (1971, p. 160) os julga como “precursores da moderna democracia” e Henri Morel (1979, p. 293), além de utilizar a expressão “novidade”, também chama a teoria contratual monarcômaca de “diferente e original”. Entretanto, há que se considerar que as múltiplas faces da teoria apresentada por eles já haviam sido anteriormente abordadas por diferentes autores. Vale ressaltar que os monarcômacos, ao buscar referências nas escrituras, na história e no direito, estavam direta e indiretamente deixando claro que sua teoria se assentava sobre práticas e idéias anteriores.
[3] Uma das passagens mais claras no Le Politicien sobre a teoria contratual é a que se segue: “Mas há uma lei entre ambas as partes que ordena pactos e conveniências recíprocas, que não se podem, nem pelo príncipe, nem pelos súditos, serem violadas sem que se viole a justiça”. (Le Politicien in GOULART, Memoires de l’estat de France sous Charles Neufiesme ... op. Cit., vol.. III, p. 85). Para Buchanan, autor do De jure regni opud scotos (Edimburg, 1578), o contrato é “um pacto mútuo entre o rei e os cidadãos”. (TOUCHARD, 1970, p. 50).
[4] Henri Morel fala aqui dos muitos textos do “direito público” que tratavam da lex regia e sua interpretação e as grandes divergências que haviam suscitado. (La place de la lex regia dans l’histoire des idées politiques, Études offertes à Jean Macqueron, Aix in Provence, 1970, p. 545-555).
[5] Ver Apêndice “As raízes do Contrato no Direito Romano e na Idade Média”.
[6] Uma importante observação é que a palavra ‘contrato’ tem, nas Vindiciae, uma conotação própria e abrangente. O autor emprega diversas expressões tais como convênio, aliança, pacto, como que significando diferentes aspectos do contrato ou mesmo como sinônimo do mesmo. De certa forma, estes termos têm para Brutus um significado muito próximo na sua teoria contratual: aliança [foedus], contrato ou acordo [pactum], contrato [paciscitur], contrato [contractus], contratos [contra pacta], acordo mútuo [confoederatio], acordos e convenções [conventiones].
[7] Deus era representado pelo sumo sacerdote: “A primeira era entre Deus, rei e povo, ou entre o sumo sacerdote, povo e rei. (...) Seu objetivo era que o povo fosse o povo de Deus; isto é, que este povo fosse a igreja de Deus.” (Vindiciae, p. 50).
[8] É interessante perceber que a aprovação popular e divina tinham um significado especial na investidura dos reis, mesmo muito tempo depois do contexto judaico. Kantorowicz (1998) confirma essa aprovação popular e mostra como o aspecto religioso tinha peso nesse contexto medieval: “o governo do rei era legalizado exclusivamente por Deus e pelo povo, populo faciente et Deo inspirante.” (KANTOROWICZ, 1998, p. 202).
[9] “Embora a forma da igreja judaica e também do próprio reino tenha mudado, como o que em princípio tenha sido limitado a Judá pudesse ser difundido por toda a parte do mundo, todavia o mesmo pode-se dizer definitivamente dos reis cristãos. O testemunho venceu para a Lei, e os reis cristãos substituíram os reis dos Judeus. O acordo [pactum] é o mesmo, as condições são as mesmas, as punições são as mesmas; e se elas não satisfazem o Deus Todo Poderoso, a vingança da perfídia é a mesma.” (Vindiciae, págs. 17 e 18). “Visto que se, assim como será facilmente provado a partir da Escritura, isto era lícito para todo o povo Judeu, e mesmo se aproveitava disso, então, creio eu que ninguém negará que exatamente o mesmo está manifestamente estabelecido de acordo com todo o povo cristão de qualquer reino.” (Vindiciae, p. 32).
[10] Daniel 4: 22. (Vindiciae, p. 20).
[11] Romanos, cap. 13: 1, 4, 7; Mateus, cap. 22: 21 e, I Pedro, cap. 2: 17-18.
[12] “Deus escolheu de todos os povos o povo de Israel para ser o Seu especial; e selou um aliança [foedus] com ele, de que seria o povo de Deus.” (Deuteronômio, capítulo 2) A importância deste acordo [pactum] era a seguinte: que todos juntos como um todo [universi] atentassem que Deus era adorado de uma forma pura pelas tribos de indivíduos e por seus respectivos membros na terra de Canaã, e que Ele deve ter sua igreja erigida ao centro, para a eternidade. Isto aparece em muitos outros lugares, e também claramente em Deuteronômio cap. 27. Lá, Moisés e os Levitas, como que estipulando em nome de Deus, reuniram todo o povo e dirigiram-se a eles com estas palavras: ‘Hoje, O Israel, te tornastes o povo do Senhor teu Deus; portanto, obedeçais teu Deus (...)”. (Vindiciae, págs. 32 e 33). “A partir da época em que os reis foram entregues ao povo, este acordo [referindo-se à aliança que separou Israel como povo de Deus] não caiu em declínio, como foi até mesmo confirmado e renovado.” (Vindiciae, p. 35).
[13] Um pouco mais à frente, Brutus dirá que “o povo é mais poderoso que o rei”. (Vindiciae, p. 88).
[14] É essa noção que é apresentada como oposta à garantia “real”, conforme Jolowisz e Nicholas, em seu Introdução Histórica, 1952, p. 298-301.
20 Beneficium divisiones – o direito de um devedor processado apenas por uma parte do débito ser liberado, pelo fato de outro haver sido processado. Em Cod. 8. 40. 38, Justiniano tinha abolido a regra de que, quando muitos eram responsáveis pelo mesmo débito, processando-se um liberava-se os outros. (GARNETT, 1994, p. 39).
[15] “O sacerdote pergunta formalmente se prometerão que o povo será o povo de Deus; e se serão devotos na garantia que Deus terá sempre Seu Templo e Sua Igreja no centro, onde poderá ser propriamente adorado? O rei garante, e Israel também que uma corporação de homens permaneça no lugar de uma única pessoa e de fato eles o fazem juntos, não em separado, como a clareza de suas próprias palavras, direta e sem nenhum intervalo. Então, as duas partes aqui o Rei e Israel são constituídas e por esta razão são igualmente confinadas à mesma quantia total.” (Vindiciae, p. 37).
[16] “Resumindo, se não fosse lícito dar ao povo a capacidade de cumprir o que havia prometido, Deus certamente não teria selado um aliança com aquele que não tinha o direito de prometer, nem de cumprir o que havia sido prometido.” (Vindiciae, p. 40).
[17] “A questão ficará mais clara através dos exemplos. Por que, pergunto eu, pensamos que o exército de Israel foi vencido e aniquilado junto com o Rei Saul? (I Samuel 21) (...) Não é muito mais provável que esta derrota ocorreu porque o povo não resistiu a Saul quando ele estava quebrando a lei de Deus, e o aplaudiu quando ele perseguiu impiamente os pios, isto é, Davi e os sacerdotes do Senhor? (...) Saul quebrou a fé pública dada aos Gibeonitas da época da entrada em Canaã e acabou com tantos Gibeonitas quanto pôde. (II Samuel 22). Ao fazê-lo, rompeu o terceiro preceito da lei, visto que Deus é testemunha daquele acordo [pactio]; e também o sexto, por ter injustamente matado os inocentes. Cada Tábua da Lei tinha que ser vindicada. (...) Da mesma forma, quando Davi instruiu Joabe e os sacerdotes do povo israelita a contar as pessoas, diz-se que ele havia cometido um grande crime ao fazê-lo. (II Samuel 24) (...) Devido aos prefeitos previrem que seria fatal para Israel que eles se opusessem primeiro por pouco tempo; então, tomaram o censo por amor à forma e negligentemente. Porém, todo o povo sofreu. Não apenas Davi, como também os anciãos de Israel que representavam o todo, se penitenciaram e se polvilharam com cinzas. (...) Quem não enxerga aqui que todos juntos como um todo [universi] pecaram e devem se arrepender e, resumindo, pagar a punição? (...) Daí o ponto de vista de Agostinho e Ambrósio: Herodes e Pilatos condenaram Cristo; os sacerdotes entregaram-no à execução; o povo quase chorou; e ainda juntos como um todo [universi] foram punidos. Por que então? Porque embora pudessem tê-lo arrebatado das mãos dos magistrados ímpios, não o fizeram, e portanto o mataram.” (Vindiciae, p.44 e 45).
[18] “Se é lícito resistir a um príncipe que deseja ab-rogar a lei de Deus e assolar a igreja: e também quem pode fazê-lo, como e em qual extensão.”
[19] “Se, e em que extensão, é lícito resistir a um príncipe que está arruinando a comunidade: também quem pode fazê-lo, como e com que direito isto pode ser permitido.”
[20] Para maiores esclarecimentos sobre a expressão ‘moderna’ (quando nos referimos à teoria contratual monarcômaca), veja a nota de rodapé 194.
[21] Esta é a primeira invocação da teoria conciliar no livro. O concílio de Constança (1414-1418) reuniu-se para resolver o Grande Cisma. O autor está provavelmente pensando no decreto Haec Sancta (também conhecido como Sacrosancta), questionado pelo concílio em 1415, que declarou que um concílio geral da igreja mantinha o poder imediatamente de Cristo, e que qualquer um, de qualquer posição ou ofício, mesmo um papa, era limitado a obedecê-lo nos proplemas pertinentes à fé; e além disso, que se qualquer um, incluindo um papa, se recusasse insubordinadamente a obedecer seus mandatos, e recusasse a se arrepender, deveria ser devidamente punido de acordo com as sanções da lei. O concílio de Basiléia (1431-1449) reiterou, e se estendeu sobre os decretos doutrinários do concílio de Constança. O autor poderia estar pensando em qualquer número de fontes que registram os procedimentos do concílio; um exemplo típico seria o decreto De veritate fidei catholicae per tres veritates (1439), que afirma que “é uma verdade da fé católica que o sagrado Concílio Geral mantém o poder sobre o papa e outros mais”. (GARNET, 1994, p. 47).
[22] Summa Teológica, questão III (2ª parte), art. 2. O dominicano Jean de Paris, no começo do século XIV, tornará mais explicita a fórmula ao afirmar que “o poder, seja nele mesmo, seja em seu exercício, não vem do papa, mas de Deus e do povo, que escolhe seu rei quanto à sua pessoa e quanto à sua família”. (FERET, 1896, p. 376).

O contratualismo no Du Droit des Magistrats - 2007

O Contrato em Théodore de Bèze como instrumento contra a Tirania
Frank Viana Carvalho

A singularidade da teoria de resistência de Bèze não está nos elementos separados que ela incorpora, nem na ênfase que ele deu a cada um, mas no modo como ele os combinou e a aplicabilidade particular de sua teoria no tempo em que ele a escreveu. Além disso, a finalidade secular e espiritual do Estado, os magistrados como representantes do povo, a vocação e chamado para funções especiais e a resistência à tirania, são propostas que não representavam novidades. O mérito de Bèze está justamente na justaposição desses elementos e, a estes, ele ainda incorporou outro igualmente importante: o contrato.

Hotman havia narrado uma história constitucional francesa para dali extrair elementos que estabelecessem uma limitação do poder real. O autor de Du Droit des Magistrats preferiu outro caminho. Tendo já apresentado os magistrados como representantes vocacionados e chamados por Deus para defender os interesses do povo, cabia agora mostrar o que os obrigava ao cumprimento do dever. E ele escolheu a analogia do contrato, pois percebeu que ela estava presente direta e indiretamente ao longo da história nas relações entre povo e magistrados.
Bèze procurou demonstrar historicamente que existiam instâncias de relações condicionais entre reis e o povo.[1] Entretanto, um oponente poderia demonstrar um número igual de exemplos históricos nos quais é aparente que nenhuma condição expressa está ligada à relação entre governante e governado. Além do mais, poderia ser apresentado o argumento de que, mesmo que sejam incluídas condições, somente Deus poderia corrigir o mal, caso as regras fossem violadas pelo governante. Ele se antecipa a essas objeções invocando a lei natural. Afirma que é evidente que nenhuma nação se submeteria sem condições expressas ou tácitas de ser governada de acordo com a justiça e a igualdade.

(...) que não houve jamais uma nação, que conscientemente e sem crença ou força, se entregou até ao ponto de se colocar debaixo da vontade de alguns soberanos, sem esta condição precisa, ou tacitamente entendida: de ser justa e eqüitativamente governada. (Du Droit des Magistrats, p. 45).

Uma submissão equivocada demonstra-se contrária à lei natural e, mesmo quando consentida voluntariamente, seria tão contrária à justiça natural que não teria nenhum valor e seria nula em sua legalidade. Bèze tenta prevenir outras críticas dizendo que essa proposição é tão clara e óbvia à razão natural que somente aqueles “de todo privados de bons sentidos” não concordariam com isso. (idem, p. 46). Para ele, contratos entre o povo e os governantes podem ser evitados, mas de forma alguma isso é um retorno ao estado de natureza. O que Bèze tenta provar é que há sempre condições ligadas ao contrato entre governante e súditos, e assim o governante está sempre limitado por certas condições; e mais, se o governante, como um tirano viola essas condições, alguém além de Deus, tem o direito de fazer algo a respeito.

Os magistrados inferiores, em função de haverem por juramento prometido sustentar as leis fundamentais, têm por sua obrigação contratual o dever de assegurar a conformidade do rei com as condições do contrato.[2] E havia ainda o aspecto da vocação que tornava essa ação contra a tirania uma obrigação inviolável. No dizer de Bèze: “deve ser anulado todo poder que se afasta da eqüidade e da honestidade”. (idem, p. 14).

Em todo contrato há a possibilidade de anulação ou quebra se uma das partes violou o seu compromisso pactuado. Ou seja, aqueles que fizeram o contrato podem quebrá-lo se houver uma boa razão. (idem, p. 45). A conclusão é que aqueles que têm o poder de criar um rei, isto é, os que fazem o contrato, também têm o poder de depô-lo, isto é, quebrar o contrato. Se uma das partes violou as regras, há razão para a quebra do contrato. No relacionamento entre o povo e o rei, isso tende a acontecer com o rei, pois é ele que assumiu o compromisso de governar e cuidar do bem-estar de todos.

Dois contratos são apresentados por Bèze e estão envolvidos na estrutura política desejada. O primeiro é uma aliança feita conjuntamente pelo rei e pelo povo a Deus, no qual eles juram observar as leis de Deus, eclesiásticas e políticas.[3] O segundo é uma aliança entre o rei e o povo, segundo o qual o rei jura manter certas condições e então é aceito pelo povo. (idem, p. 25).
Ele os chama de ‘votos’ ou ‘juramentos’ e seguindo através desses ‘compromissos’ registrados, primeiro na história dos israelitas, depois em outros povos, Bèze fala dos magistrados da França, onde os soberanos juram fidelidade à soberania. Os magistrados inferiores também são estabelecidos através de juramento. É em termos desse voto jurado pelo rei à soberania, que ele pode e deve remover magistrados que não cumprem com o seu dever. Respeitando seu voto à soberania, os magistrados têm a responsabilidade de assegurarem que o soberano mantenha seu voto da mesma forma. (idem, p. 20).

O voto do rei o obriga a manter as condições que aceitou para governar – foi isso que ampliou sua autoridade. Os magistrados, do mesmo modo juram manter as leis fundamentais para ampliarem sua autoridade. Bèze conclui que isso implica que tanto o rei quanto os magistrados guardam uma porção da autoridade do Estado. A obrigação mútua entre o rei e o magistrado faz com que o magistrado sirva como ‘garante’ do cumprimento do contrato entre o rei e o povo. No caso do contrato entre Deus, o povo e o rei conjuntamente ser quebrado, isto é, se o rei passasse a comandar contra a vontade de Deus, o povo ainda é obrigado a cumprir sua parte do contrato com Deus e deve continuar a fazer a vontade de Deus mesmo que isso signifique desobedecer ao rei. Esperançosamente, as preces do povo serão atendidas e o próprio Deus punirá o governante que quebrou o contrato com Deus.

Por outro lado, se o segundo contrato é quebrado, isto é, o contrato entre o rei e o povo pelo qual os magistrados agem como ‘garantes’, esse é um ato da esfera política e deve ser corrigido por aqueles cujo trabalho é corrigir tais ações na esfera política.

Não foi fácil para Bèze argumentar a partir do direito positivo sobre como a instância das leis de contratos privados (onde há vários exemplos) se aplica presumivelmente a condições expressas de contratos de governo. Como diz Finlayson (1965), “quanto mais ele inovava na teoria política, mais trabalhosos seus exemplos e razões se tornavam”. (p. 60). Ele apelará para a lei natural e para o princípio da igualdade, citando o exemplo de outros países. Em síntese, as condições ou são expressas ou estão implícitas nesta relação entre súditos e soberano. O rei vem do povo e de seus magistrados e não o contrário:

Eu digo então que os povos não são oriundos dos magistrados (...) aqueles que se deixam governar, ou por um príncipe, ou por alguns senhores escolhidos (...) são mais antigos que seus magistrados. (Du Droit des Magistrats, p. 45).

Alguns princípios se sobressaem nessa análise contratual de Bèze: primeiro, um magistrado que viola a ordem e se torna um tirano, quebra o contrato e está sujeito ao julgamento do povo; segundo, os magistrados (superior e inferiores) são oriundos do povo e a este representam; e terceiro, os representantes do povo (magistrados inferiores) são garantes do contrato e por isso podem resolver os conflitos oriundos do não cumprimento do contrato. Com base nesses três princípios deduz-se que os direitos de um magistrado soberano não são jamais categóricos, mas relativos e condicionais. Por outro lado, os direitos do povo são inalienáveis e não prescrevem.

[1] Entre as páginas 24 a 44 do Du Droit des Magistrats há exemplos históricos de relações contratuais e condicionais entre o povo e o rei.
[2] “E quanto aos magistrados inferiores, seu dever é guardar as boas leis, às quais eles juraram observar ao encontro de todos, conforme a parte do dever no estado público que lhe é entregue.” (Du Droit des Magistrats, p. 11).
[3] “Pois havia um juramento solene, pelo qual o rei e o povo obrigaram-se a Deus, a saber, à observação das leis, tanto dos deveres eclesiásticos, quanto políticos.” (Du Droit des Magistrats, p. 31-32).

O Contratualismo das Vindiciae - 2007

O Contratualismo das Vindiciae
Frank Viana Carvalho

Os huguenotes ansiavam por uma argumentação que justificasse a resistência legítima aos reis Valois (para eles tiranos em exercício) e finalmente obtiveram nas Vindiciae, pela primeira vez, uma obra que fundamentava o combate à tirania com argumentos muito bem estruturados. Porém, a maior contribuição de Mornay, tanto ao conjunto dos tratados monarcômacos, como aos estudiosos da filosofia política, foi a apresentação de uma teoria contratual que unia adequadamente os elementos políticos, jurídicos e religiosos.[1] Ao mesmo tempo em que é o ponto-chave, essa teoria é também o pano de fundo de todo o livro. Ela perpassa a obra de Mornay – desde o primeiro até o quarto capítulo[2] sendo o eixo central sobre o qual se ramificam as questões sobre o poder dos reis, a eleição do soberano, a representação dos magistrados ou a resistência à tirania. Para construí-la, Mornay tomou emprestada de Bèze a teoria do duplo contrato.
O primeiro contrato das Vindiciae é uma estipulação (stipulatio), um contrato unilateral, no qual Deus estipula, o povo e o rei prometem. Mas o rei e o povo prometem juntos, contratando assim uma obrigação solidária que ‘os obriga’ um pelo outro, e um por todos. As duas partes conjuntas são assim estreitamente ligadas no pagamento de sua dívida – ou a execução de sua promessa – estando obrigados um pelo outro e um por todos. Como, contudo, a estipulação, própria do direito romano pode ser aplicável a um contrato fundado no reino de Israel? Isso não chega a se constituir numa objeção para Mornay: o direito romano era, em efeito, o único no qual as construções jurídicas podiam dar conta desse estado de coisas. A singularidade da estipulação é haver nela a possibilidade da sanção, neste caso, uma punição divina. Sendo o modelo de Israel aplicável a todos os reis e reinos cristãos, ele seria então válido na Europa do século XVI.
Mas o contrato essencial – do ponto de vista estritamente político – é o segundo contrato, aquele que une o povo ao rei. Para precisar a posição respectiva das partes que condicionam sua participação no contrato, Mornay parte de dois postulados: o povo é superior ao rei e é o verdadeiro soberano do Estado. Ainda do direito romano teremos agora dois contratos de estipulação, cada parte estando, por sua vez, no papel de estipulante e de prometedor. Pareceria, sem dúvida, mais simples de imaginar um contrato ‘sinalagmático’[3], mas não é o que queria Mornay, porque isso colocaria as partes numa posição de igualdade que ele precisamente rejeitava. A adoção da estipulação permitia-lhe, ao contrário, pela sua flexibilidade, chegar ao seu objetivo sem maiores dificuldades.
O primeiro estipulador é o povo, cuja posição já se conhece pelo primeiro postulado – sua superioridade lhe dá esse direito. A promessa do rei é direta e simples, mas o povo, por sua vez, não tem a obrigação de se comprometer em resposta à estipulação do rei, a não ser sob uma condição: a promessa de obedecer fielmente ao rei desde que este reine justamente e de acordo com as leis. Se essa condição faltar, o compromisso cai por si mesmo – o povo permanece, de acordo com seu direito, livre de sua promessa. Para Morel (1979), de forma única e evidente no direito romano, o contrato de estipulação permitia tal interpretação, também uma total adequação entre essa construção jurídica e a teoria política das Vindiciae. (p. 295).
Tais compromissos pressupõem garantias de execução, pois quem constrangeria o rei a deixar o seu poder, a não ser o povo, por haver ele abandonado a sua promessa? Como julgar que a condição colocada pelo povo por seu próprio compromisso é ou não mantida? Ainda aqui o autor das Vindiciae recorrerá naturalmente ao direito romano. Este, com efeito, tinha previsto a partir do antigo direito, a instituição que permitia assegurar de certa maneira a execução das obrigações: era o vindex.[4] Para o primeiro contrato “Deus é o seu próprio vindex”. (Vindiciae, p. 160). Para o segundo, o papel de vindex retorna ao conjunto do povo, ou seja, aos que o representam legitimamente, os Estados Gerais ou os oficiais da coroa, em outros termos, os magistrados inferiores. Aqui Mornay faz uma clara integração entre a sua construção jurídico-filosófica e a teoria calvinista dos magistrados inferiores.
Por último, conseqüentemente, cabe constatar a ‘nulidade’ do contrato por descumprimento das condições pactuadas, em outras palavras, determinar a qualificação da tirania e tomar as devidas conseqüências contra ela – a destituição do tirano. O autor das Vindiciae não quis incorrer no erro de ter erigido uma utopia, uma teoria abstrata e sem correspondência com a realidade. Era necessário ir até o fim no combate à tirania e para isso, ao delinear o modelo teórico, ele aplica e visualiza a relação contratual através dos fatos que a apresentam como a chave, através da história, das relações entre governantes e governados. Por conhecer bem a oposição ideológica que Hotman enfrentou, seja por diferentes interpretações do poder da Assembléia sobre os reis, seja pelos erros históricos, Mornay partiu para um terreno seguro em sua argumentação contratualista: a tirania e a destituição dos tiranos eram fatos históricos que não podiam ser negados.


[1] É importante ressaltar que, na Filosofia do Direito, o contratualismo terá definições que o levam claramente a ser explicado como uma doutrina segundo a qual o Estado foi estabelecido mediante contrato entre os cidadãos, ou entre eles e o soberano. Essa perspectiva permanece na análise das Vindiciae.
[2] Consideramos como capítulos cada diferente Questão (Quaestio).
[3] Contrato ‘sinalagmático’ – No qual ambos têm o mesmo status e onde as obrigações de uma parte decorreriam automaticamente da reciprocidade entre as partes.
[4] A palavra vindex significa muito mais do que a simples tradução ‘vingador’ pode sugerir. Ela tem o sentido de alguém que garantirá o cumprimento das obrigações pactuadas, prosseguirá a ação e garantirá os interesses da parte prejudicada. (MOREL, 1979, p. 295).

As Guerras de Religião, a Saint-Barthélemy e o pano de fundo da produção monarcômaca - 2006

As Guerras de Religião e a Saint-Barthélemy
Frank Viana Carvalho

O início das Guerras de Religião


Embora não possamos neste trabalho examinar todo o percurso das idéias dos reformadores na França, alguns aspectos de seu desenvolvimento mostram-se muito importantes para uma compreensão das Guerras de religião e dos escritos revolucionários do período. E é bom salientar, como o fez Broglie (2000), que as Guerras de Religião são um ‘capítulo’ maior dentro da “questão protestante” que começou bem antes de 1562 (massacre de Wassy) e terminou bastante tempo depois de 1598 (Edito de Nantes). (p. 101).[1] O protestantismo, desde o seu surgimento na Europa sofrerá resistências religiosas e governamentais, e seu início na França não foge a esta regra. Lecler (1955), examinando a propagação da Reforma Protestante na França no século XVI, escreveu:

Do ponto de vista da liberdade religiosa, a história da França no século da Reforma divide-se em dois períodos bem distintos. De 1520 a 1560 prevalece a regra tradicional: uma fé, uma lei, um rei. (...) Não estando ainda os protestantes organizados em partidos políticos, as medidas tomadas contra eles não atingem senão os indivíduos ou os pequenos grupos. (...) A partir de 1560, a minoria protestante, numerosa e politicamente organizada, começa a reivindicar para si, no reino, a liberdade de religião, resolve-se mesmo a exigi-la pela força. (LECLER, 1955, p. 5).

A partir da terceira década do século XVI, as idéias protestantes encontraram na França um terreno fértil e a começar por Estrasburgo, certamente por sua proximidade com a Alemanha de Lutero, várias cidades da França cedem espaço para as idéias e para a conversão aos princípios da fé reformada. Seguem-se outras em rápida sucessão – Paris, Meaux, Metz, Amiens, Lyon, Grenoble, e em pouco tempo todo o país já recebe a influência dos seguidores de Lutero ou Calvino. (MOURS, 1959, p. 39-41 e 49; LEONARD, 1956, p. 12-16). Mas a repressão e a intolerância também já começavam. Em 1520 o Parlamento de Paris e a Sorbonne manifestaram-se contra a “heresia” e a primeira fogueira é acesa em Paris em 1523, queimando vivo o agostiniano Jean Vallière, acusado de blasfêmia contra a Virgem Maria.
O fogo se espalha pela França, o Parlamento renova e regulamenta a repressão, a Sorbonne torna-se mais intolerante. (LECLER, 1955, p. 11; BAILLY, 1955, p. 5). Diante disso e de outras perseguições país adentro, a atitude do rei é bastante dúbia e pelo menos até 1534 ele age com certa moderação. Mas a partir do “l’affaire des placards” em 1534 ele se volta contra os reformados e a política real começa a tornar-se mais incoerente e intransigente.[2] Mas isso não diminuiu o ímpeto da propagação das novas idéias, pelo contrário, o movimento organiza-se e cresce continuamente. Seguindo uma tendência mais calvinista do que luterana, sobretudo a partir da publicação da edição francesa da Instituição Cristã de Calvino, em 1541, os protestantes franceses contarão com um “catecismo”, “a mais influente síntese da teologia protestante do século XVI” e crescerão com espantosa rapidez. (MOURS, 1959, p. 102-103; BURNS, 1970, p. 186).
Moderado a princípio, os últimos anos do reinado de François I trazem uma violenta repressão aos huguenotes, nome pelo qual os protestantes franceses tornaram-se conhecidos.[3] Em 1539 o rei faz uma aliança com Carlos V, da Alemanha, para o restabelecimento do catolicismo na Europa e neste mesmo ano promulga um Edito “para extirpar e expulsar do reino os adeptos e cúmplices de Lutero que se desviaram da santa fé católica”. Em 1540 o Edito de Fontainebleau estabelece a pena de morte para todos os heréticos, imediatamente aplicada na Provença aos seguidores da seita dos valdenses. (CASTRO, 1960, p. 37).[4] O reinado de Henri II foi ainda mais severo e utilizou o poder do Parlamento para aumentar a opressão sobre a minoria protestante.
Poucos meses após a coroação do novo soberano, criou-se uma instituição que iria ter um importante papel na perseguição aos protestantes, a Câmara Ardente do Parlamento (maio de 1547). Desde sua criação até a extinção em 1550, foram julgados mais de quinhentos casos, com aplicação de penas cruéis. (MOURS, 1959, p. 63-64; LECLER, 1955, p. 25). As prescrições do Edito de Fontainebleau são confirmadas em 1549 e, pelo Edito de Châteaubriant (1551), outra vez regulamentadas e ampliadas contra os reformados, permitindo a quem os delatasse, o confisco e posse dos bens dos ‘hereges’. (CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 185). Um fato notável desse período foi a resistência dos tribunais em aplicar a repressão contra os concidadãos do reino. Em 1555, os juristas do Parlamento de Paris tiveram a ousadia de opor-se ao rei. O porta-voz do Parlamento, Pierre Séguier, lembrou ousadamente ao rei que o antigo imperador Trajano havia se recusado a empregar tais métodos “contra os primeiros cristãos, que eram perseguidos como o são agora os luteranos”. Mas o rei não se intimidou e no Edito de Compiègne (1557) proibiu expressamente os juízes de exercer clemência para com os hereges. A política intolerante do rei permanecerá em vigor, velada, mas abertamente executada até o final de seu reino, em 1559.
A morte do rei, ferido por uma lança, foi recebida pelos reformados como um sinal da justiça divina para libertá-los da dura perseguição sofrida. Até mesmo Calvino escreveu sobre isso quando disse que “a tempestade terrível da perseguição que transtornava todo o reino talvez se amaine por este golpe da Providência”. (MADELIN, 1924, p. 81). Mas ele estava enganado e dias piores viriam para os protestantes.
As idéias reformadas que, a princípio tinham se disseminado entre os “pequenos”, encontraram um terreno fértil a partir da década de 1550 entre os nobres da França. Vale destacar que os “pequenos” não eram necessariamente os mais pobres, mas a pequena burguesia, modestos funcionários, humildes comerciantes, operários, alguns camponeses e muitos intelectuais. (MOURS, 1959, p. 92). A partir da década de 1550 a nobreza, já insatisfeita com sua situação no reino e com a perda de privilégios, encontra no zelo religioso uma esperança sincera de obter, na nova fé, lenitivo para a corrupção da Igreja e, em certo sentido, do Estado. Neste momento, a “igreja reformada se estende rapidamente em todo o reino e por todas as classes sociais”. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63). Não há como distinguir os chamados “huguenotes de Estado”, “huguenotes de Religião” e “huguenotes de aventura”. Pequenos e grandes nobres aderem ao movimento. Antoine de Bourbon, príncipe de sangue, cujo casamento com Jeanne d’Albret lhe deu o título de rei de Navarre, foi o primeiro dos grandes a se converter à nova fé em 1555. Seguem-se muitos: Louis de Condé, os Montpensier, onde se destacavam os irmãos Chastillan; Odet, cardeal-bispo de Beauvais; Gaspard de Coligny, almirante de França e François d’Andelet, coronel de infantaria. Alguns anos depois já se contam aos milhares os nobres que haviam abraçado a nova fé.
A partir de 1559, com a morte súbita do rei Henri II, o trono vai ser ocupado sucessivamente por seus três filhos, François II (1559-1560), Charles IX (1560-1574) e Henri III (1574-1589). Todos os desatinos já existentes em potencial durante os reinados de Francisco I e seu sucessor, mas, então, tolhidos pela força e prestígio da vontade real, vão encontrar livre curso sob aqueles “débeis, neuróticos, inconstantes filhos de Henri com a ítalo-florentina Catarina de Médicis”. (ERLANGER, 1960, p. 285-286).[5] Durante o curto reinado de François II[6], o governo é entregue ao duque de Guise, líder dos católicos na luta contra os huguenotes, e opositor declarado dos Bourbon (descendentes de Luís IX, o São Luís). Com o objetivo de libertar o monarca da tutela dos Guise, um complô se organiza sob a liderança de “um aventureiro, Monsieur de La Renaudie”. Mas esta conjuração feita em Amboise foi delatada, e os conjurados, cerca de duzentos, massacrados. Isso reforça o poder dos Guise, que “posam de salvadores do rei François II”, e aumentam a repressão e perseguição aos huguenotes.
Em dezembro de 1560, o rei, um adolescente de 15 anos que havia sido incapaz de resistir ao poder dos Guise, vem a falecer, dando lugar ao seu irmão, Charles IX, ainda uma criança (10 anos). Catarina de Médicis, sua mãe, assume a regência e, “hostil aos Guise”, tenta governar de forma independente. Uma Assembléia dos Estados é convocada e os representantes reunidos em Orléans deparam-se com a difícil situação financeira da coroa. Opositores “reclamam o confisco dos bens do clero para pagar as dívidas do Estado”, outros pedem “a liberdade de culto aos protestantes”. Catarina aumenta os impostos e, para restabelecer o equilíbrio, tenta impor medidas conciliatórias que permitam aos protestantes exercer sua fé sob certas condições, mas só consegue o fim das perseguições oficiais. (GAUSSEN, 1998, p. 6; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 189). Nessa época, segundo Émile Leonard (1955), praticamente “um quarto do país já havia passado para a reforma”. (p. 29). Mas as perseguições não oficiais não param e neste período (dezembro de 1560 a janeiro de 1562) mais de três mil protestantes são mortos.[7] O Colóquio de Poissy, ocorrido entre setembro e outubro de 1561 foi uma das tentativas de Catarina de Médicis para apaziguar os lados beligerantes. O chanceler liberal Michel de L’Hôspital, cuja esposa era uma huguenote, abriu o encontro convidando as duas partes ao diálogo e ao entendimento. Numa reação imediata, o arcebispo de Lyon, Cardeal Tournon, levantou-se para protestar contra a própria natureza da Assembléia, mas por fim, permitiu-se que representantes de ambas as partes discursassem: Théodore de Bèze pelos reformados e o teólogo jesuíta espanhol Diego Lainez, pelos católicos. Divergências teológicas impediram o acordo e deixaram os cerca de cinqüenta bispos presentes aborrecidos com a realeza, que os colocara em pé de igualdade com os protestantes.
Os huguenotes, percebendo as intenções diplomáticas de Catarina, conseguem uma vitória: é promulgado em janeiro de 1562 o Edito de Saint-Germain, que autoriza o culto dos reformados ao redor das cidades. Mal tiveram tempo para comemorar: em 1º de março de 1562, os huguenotes de Champagne achavam-se reunidos em Wassy na celebração de um culto, quando, surpreendidos pelo duque de Guise e sua tropa, foram massacrados. Situa-se ali, historicamente, a primeira guerra de religião, embora outros incidentes menores já houvessem ocorrido anteriormente. (BROGLIE, 2000, p. 101; MIREPOIX, 1950, p. 55). Os huguenotes, que desde 1560 já haviam se organizado politicamente em um partido, armam-se para se opor aos ataques dos Guise, mas quando se enfrentam em dezembro na cidade de Dreux, são novamente derrotados.
Este período marcará a influência de Catarina de Médicis na tentativa de, com arranjos e combinações, dar fim à luta “fratricida”. (DUBY, 1958, p. 340). Em março de 1563 ela consegue a promulgação do Edito de pacificação de Amboise, que sendo mais restritivo aos protestantes, agrada aos seus opositores. O Edito só permite o culto dos reformados em ambientes fechados. Esse interlúdio, de muita intolerância e de poucos e inexpressivos confrontos só dura quatro anos. Entre setembro e novembro de 1567, após provocações de ambos os lados, ocorrem combates em Meaux e Saint-Denis. Em março de 1568 virá o Edito de paz de Longjumeau, marcando o fim da segunda guerra de religião, mas em agosto começará a terceira e mais longa das guerras desse período conturbado. Ocorrem combates em Poitiers, Tours, Jarnac e Moncontour, onde Louis de Condé morre no campo de batalha. Gaspard de Coligny está agora sozinho na liderança militar e política dos huguenotes e faz valer seu papel: vence batalhas em Languedoc, retoma o vale do Rhône e estabelece em Charité-sur-Loire. Seus comandados retomam Tours e Poitiers. Enfrentamentos continuam a ocorrer em diversas partes do país e a paz só virá em agosto de 1570, com o Edito de Saint-Germain, que concede aos protestantes cidades onde teriam segurança e liberdade de culto (La Rochelle, Cognac, Charité-sur-Loire e Montauban). (BERTIÈRE, 1994, p. 459-463; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 192). Com as vitórias e a crescente influência de Coligny, vem outro ganho em favor dos protestantes: ele é feito almirante e torna-se conselheiro do rei, que se inclina em direção aos huguenotes.


O Massacre da Noite da Saint-Barthélemy


Na noite de 23 para 24 de agosto de 1572, os sinos da catedral de Saint Germain-l’Auxerrois fizeram o prenúncio do dia da Saint-Barthélemy, por ironia um mártir. Com o toque dos sinos, ouvem-se também os terríveis gritos dos que eram assassinados. Começava o massacre da noite da Saint-Barthélemy em que, entre três e dez mil huguenotes morreram na capital francesa. Outros milhares morreriam no restante do país.
Poucos dias antes era calmo o ambiente na capital Paris. Havia sido celebrado no dia 18 de agosto um matrimônio real que deveria encerrar duas décadas de lutas religiosas entre católicos e protestantes. Os noivos eram Henri, rei de Navarre e chefe da dinastia dos huguenotes, e Marguerite de Valois, princesa da França, filha do falecido Henri II e de Catarina de Médicis. Marguerite era irmã do então rei, Charles IX. Milhares de huguenotes de todo o país, a fina flor da nobreza francesa, foram convidados a participar das festas desse casamento. Na verdade, uma armadilha sangrenta, como se veria mais tarde. O casamento foi realizado por determinação da poderosa rainha-mãe Catarina de Médicis, conhecida por sua sagacidade e sede de poder. Mas as razões do massacre podem ser melhor explicadas.
O quadro já conturbado das disputas políticas e religiosas ganhou um complicador adicional quando Coligny convence o rei a reverter sua política externa tradicional e apoiar a resistência dos protestantes holandeses contra os espanhóis. Se fosse concretizado esse plano, a França e a Espanha poderiam entrar em guerra. Catarina concluiu então que Coligny precisava ser eliminado, a fim de cortar toda a sua influência sobre o rei. Sabendo que o seu filho não concordaria com uma execução legal, ela optou pelo assassinato do almirante. O plano era fazer parecer que Coligny fora morto pelos Guise – assim, a ira dos protestantes se voltaria contra os Guise, e duas ameaças à sua influência sobre o rei (Coligny e a família Guise) estariam afastadas.
Alguns dias depois da cerimônia de casamento, o almirante Gaspard de Coligny sofreu o atentado em rua aberta tendo apenas ferimentos leves. O problema é que o assassino errou o tiro e com isso, frustrou o plano de Catarina. Ainda assim, os huguenotes pressentiram uma conspiração. Estava em perigo a frágil trégua obtida através do casamento. Carlos IX ficou estarrecido ao saber do atentado a Coligny, seu conselheiro e confidente. O rei então falou de “caçar implacavelmente os autores do atentado”, o que deixou Catarina em grandes dificuldades. Ela rapidamente modificou seu plano e junto aos líderes católicos espalhou o boato de que os huguenotes estavam planejando uma rebelião para vingar-se do atentado. Neste momento o rei Charles IX, a princípio inseguro, pressionado pela mãe e pelo temor da rebelião dos protestantes, finalmente cedeu e ordenou a execução de Gaspard de Coligny. (MIQUEL, 1976, p. 170-171; CHEVALLIER, 1954, p. 258). Na impetuosidade da decisão solicitou um trabalho completo: nenhum huguenote que pudesse acusá-lo posteriormente do crime deveria permanecer vivo. Listas de nomes foram providenciadas para facilitar um massacre metódico. Os desprevenidos huguenotes foram mortos ainda em suas camas, a começar por Coligny, cujo corpo foi lançado pela janela do seu apartamento e depois, mutilado.
Teve então início o massacre que, segundo alguns historiadores, dizimou entre dez e cem mil huguenotes em toda a França. (ESTEBE, 1968, p. 19[8]; BURNS, 1994, p. 207[9]). Henri de Navarre, o líder dos protestantes, foi poupado na Saint-Barthélemy, especialmente por ser genro da rainha mãe e ter ficado escondido nos aposentos palacianos. O ódio misturado com o zelo religioso era tão grande que “o papa Gregório XIII fez cantar um Te Deum à Santa Maria e dirigiu uma cerimônia de ação de graças a São Luís, santo francês, em Roma, nos dias 5 e 8 de setembro de 1572, para agradecer a Deus de haver permitido” o massacre da Saint-Barthélemy. E “numa bula do dia 11 de setembro do mesmo ano ordenou um jubileu para obter a mesma graça da destruição dos huguenotes e o desaparecimento da heresia na França”. (AMBELAIN, 1981, p. 273).

As últimas Guerras de Religião


O início da quarta guerra de religião foi marcado pelo episódio da Saint-Barthélemy. O rei Charles IX, após autorizar a trágica morte de Coligny, volta-se totalmente contra os reformados e ordena o cerco à cidade de La Rochelle em fevereiro de 1573. Durante este tempo, os protestantes, “privados de seus chefes, mas inflamados por seus pastores”, retomam as armas e defendem-se como podem. Estabelecem em Millau, no sul da França, uma constituição federativa, civil e militar, onde uma espécie de república oferece segurança aos huguenotes e garantias aos católicos moderados. Em julho, após seis meses de cerco a La Rochelle, sem que o rei conseguisse a rendição da cidade, é feito um Edito de paz em Boulogne, que marca o fim da quarta guerra. Essa paz deixa os católicos descontentes e é insatisfatória para os protestantes por suas condições: livre exercício de culto em apenas três cidades de segurança (La Rochelle, Nîmes e Montauban) e no restante do país (exceto em Paris) poderiam ter reuniões religiosas em suas casas com no máximo dez pessoas. O rei Charles IX, tido como fraco por ambos os lados, tenta a paz pelo Edito de La Rochele em 25 de junho de 1573. Pouco tempo depois, no ano seguinte, o rei Charles IX vem a falecer (31 de maio de 1574).
O país entra em efervescência: panfletos e escritos huguenotes que antes da Saint-Barthélemy atacavam os Guise, agora atingem também o rei e sua mãe. O desencontro entre o pensamento religioso da realeza na população, e a idéia política da realeza entre os dirigentes do poder provocou a perda do prestígio da monarquia francesa entre todas as camadas da população. (BERTIÈRE, 1994, p. 208). A corte enfrenta tremendas dificuldades financeiras e o país está dividido: a Saint-Barthélemy nada trouxera de bom ao reino. Há descontentes de todos os lados e Henri de Navarre, finalmente, mas com dificuldades, consegue sair do país em direção à Suíça. Em 30 de maio de 1574, o rei Charles IX falece e Catarina de Médicis mais uma vez assume o reino. Henri III, informado da morte de seu irmão deixa a Polônia, onde estivera para assumir o poder pelos laços de união com sua esposa polonesa.
Neste ínterim Catarina de Médicis propõe aos protestantes que entreguem as cidades que estavam sob seu poder, deponham as armas e em troca receberiam o direito de liberdade de consciência e de poder batizar seus filhos no culto protestante. Mas ambos os lados não querem a paz e os protestantes no decurso da guerra conseguem retomar mais algumas cidades (Riez, Digne, Saintonge e Languedoc) e ainda recebem apoio e tropas da Alemanha. Henri III, irmão do falecido rei Charles IX, assume em seu lugar. Sente-se no ar que algo irá mudar, mas tudo continua como antes e em agosto de 1574 inicia-se a quinta guerra de religião com combates generalizados.
As reivindicações são muitas de todos os lados: os católicos, liderados por Henri de Guise, não querem nenhuma concessão aos protestantes; os huguenotes querem a liberação de prisioneiros, liberdade de culto e uma reunião dos Estados Gerais. Após quase quatro anos de incessante turbulência, o rei, sentindo grandes dificuldades de lidar com a situação, além de ceder, demonstra simpatia à causa huguenote e assina o Tratado d’Etigny, chamado de “Paix de Monsieur” ou Edito de Beaulieu em maio de 1576. É o fim da quinta guerra de religião, com aquele que seria, até o momento, o acordo mais favorável aos protestantes: “liberdade de culto em todo o país (exceto em Paris), várias cidades de segurança (onde teriam liberdade de culto), liberação dos prisioneiros, metade das cadeiras no parlamento e a promessa de reunir os Estados Gerais”. Além disso, os líderes huguenotes são premiados: Alençon recebe o título de duque D’Anjou, Henri de Navarre recebe o governo da Guiana e Henri de Condé, o governo da Picardia. (BERTIÈRE, 1994, p. 464-465; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 193-196).
Inconformados, os católicos se organizam em uma Liga e, sob a liderança dos Guise, fazem de tudo para recomeçar os combates e impedir que os líderes huguenotes desfrutem de seus novos postos.[10] Apoiados “pelos prelados do rei, pelo rei da Espanha e pelo papa”, querem muito: devolver aos nobres católicos todos os seus privilégios, restituir o trono aos carolíngios (diga-se ‘aos Guise’) e restabelecer a ortodoxia católica em todo o reino. A guerra era uma questão de tempo. Os protestantes também se organizam: sob a liderança de Henri de Navarre, ‘chefe dos protestantes’, unem-se ao rei da Suécia, aos príncipes alemães e a Elisabeth, da Inglaterra. Mas nesse meio tempo, pacifistas como La Noue, herdeiro político e religioso de Coligny, fazem de tudo para que haja paz e tolerância e, por algum tempo, conseguem neutralizar os ânimos exaltados de lado a lado.
Tão reivindicados pelos huguenotes, os Estados Gerais se reúnem em dezembro de 1576 em Blois, onde os representantes católicos, em maior número, reivindicam o restabelecimento da unidade religiosa. A Assembléia termina sem alterações no Tratado d’Etigny e os conflitos recomeçam, marcados por pequenos e grandes confrontos em diversas cidades. Tinha início a sexta guerra de religião. O rei resiste, mas, pressionado pela Liga, acaba por assinar em setembro de 1577 o Tratado de Bergerac e o Edito de Poitiers, mais restritivos aos huguenotes do que os anteriores, diminuindo os lugares de segurança e impedindo o proselitismo protestante. A guerra termina e, embora o clima de tensão permaneça no ar por quase três anos, esse período é marcado pela tolerância e pela ação de La Noue e dos politiques, católicos moderados que incentivam a convivência pacífica das duas ‘religiões’ beligerantes. Em abril de 1580 ocorrerá a penúltima guerra, com novos enfrentamentos dos Guise e dos protestantes na região do Poitou. Mas apenas seis meses depois, em novembro, virá o Edito de Paz de Fleix, marcando o final da sétima guerra de religião.
A Liga, insatisfeita com o rei Henri III, por suas concessões ‘generosas’ aos protestantes, indigna-se ainda mais após o falecimento de François D’Alençon Anjou, irmão mais novo do rei.[11] Essa morte abriu caminho para que o Henri de Navarre se tornasse o próximo na linha sucessória, tanto por seu casamento com Marguerite de Valois, como por sua ascendência real, por ser o mais velho descendente direto do último filho do rei Luís IX (‘São’ Luís). Essa possibilidade assusta os partidários da Liga e entusiasma os protestantes, o que traz mais elementos de instabilidade ao reino.[12]
Mesmo após sofrer um atentado, o rei confirma Henri de Navarre como seu sucessor, declarando-o ‘delfim da França’. Inconformada, em março de 1585, a Liga protesta com violência em Péronne, ameaçando não só os huguenotes, mas também o rei. Esse incidente marca o início da oitava e última guerra de religião. O rei sente o reino ameaçado e julga que, para não perder o trono, terá de fazer concessões: é assinado o tratado de Nemours entre o rei e a Liga revogando todos os Editos que autorizavam o culto reformado e proibindo o protestantismo na França. (CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 197).
Os combates se acirram com vitórias de ambos os lados: em outubro de 1587, Henri de Navarre vence as tropas reais conduzidas pela Liga em Coutras; em novembro, Henri de Guise vence os cavalheiros huguenotes nas proximidades de Paris. Panfletos são distribuídos a mando dos Guise numa forte crítica ao rei. Em maio de 1588, a Liga tenta tomar Paris e o rei, temendo a morte, foge da cidade. Acuado pela Liga e receoso da pressão exercida por Filipe II, rei da Espanha, ele é forçado a aceitar o Edito de União, o qual assina em julho, restabelecendo a hegemonia católica no reino.
As coisas pareciam ficar cada vez piores e mais complicadas para o rei e para os huguenotes, mas um acontecimento externo traria uma mudança importante aos eventos internos. O rei da Espanha, que ameaçava invadir a França ou outros países que mostrassem uma política de tolerância aos protestantes, resolveu mostrar a força da “invencível armada” numa invasão ao reino bretão. Isso porque Maria Stuart, que havia restabelecido à força o catolicismo na Escócia, aprisionada e mantida cativa por dezenove anos, fora decapitada por ordem de Elisabeth Iª, rainha da Inglaterra. O rei espanhol Filipe II, com 130 navios, 10.000 marinheiros e 19.000 soldados tinha a vitória como certa. Mas tempestades e a forte resistência dos marinheiros e soldados ingleses reduziram a “invencível armada” a 63 navios, que voltaram humilhados para a Espanha. (GAUSSEN, 1998, p. 7).
Sentindo-se livre de pressões externas, o rei Henri III cria coragem e resolve enfrentar os Guise: em dezembro de 1588, convoca uma reunião dos Estados Gerais e nela manda prender os principais líderes da Liga, entre eles, o duque Henri de Guise e seu irmão, o cardeal de Guise, ordenando em seguida a morte de ambos. Em abril de 1589 faz um acordo com Henri de Navarre e, por suas atitudes, acaba sendo excomungado pelo papa. Nesse momento, Jean Boucher, que neste mesmo ano publicaria De justa Henrici Tertii abdicatione, “convence a Faculdade de Teologia de Paris a intervir junto ao papa para declarar Henri III deposto”, decisão esta que foi ratificada pelo Parlamento. Os ódios católicos se voltam definitivamente contra o rei.
A Liga então prepara seu plano para a deposição e efetivo afastamento de Henri III: uque publicaria creve um tratado para incentivar a deposiçanceza dos catpelo papa. morte do cardeal externo faria pedindo o prosuum ‘fanático’ católico matará o rei, o que abrirá espaço para a imediata elevação do tio católico de Henri de Navarre, o cardeal de Bourbon. O plano parece perfeito, pois a morte do último Valois (Henri III) abriria espaço para que um descendente real legítimo, no caso um Bourbon, pudesse ser rei. Desconsidera-se a indicação de Henri de Navarre como delfim feita pelo próprio rei, mas mantém-se a legalidade constitucional. O plano é executado: no primeiro dia de agosto de 1589, Jacques Clément assassina Henri III e em seguida a Liga e o Parlamento declaram o cardeal como ‘rei’.[13] Entretanto, poucos meses depois, para desespero da Liga, o cardeal, que efetivamente nunca chegou a assumir a coroa, vem a falecer abrindo novamente o caminho para Henri de Navarre. (JANET, 1971, p. 203; LEONARD, 1956, p. 132; RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 63).[14]
Mas Navarre terá de enfrentar duras batalhas políticas, religiosas e militares ao longo de quatro anos para confirmar o seu acesso ao trono francês. Somente em março de 1594 ele será aceito triunfalmente em Paris – esse episódio marcará o fim da oitava guerra de religião. Para assumir o reino, consegue “a preço de ouro, a submissão dos chefes da Liga” e se “converte” ao catolicismo. Essa ‘conversão’ ocorre justamente numa Assembléia dos Estados Gerais em 1593, na qual ele pronuncia a frase que entrou para a história: “Paris bem vale uma missa”. Embora católico, permanece irmão espiritual dos huguenotes e concede-lhes a igualdade de direitos políticos através do Edito da Tolerância de Nantes, em 1598.[15] Não era um decreto perfeito, tanto no entender dos católicos, como no dos protestantes. O Edito de Nantes fez da Igreja Católica a igreja oficial, com seus antigos direitos, propriedades e rendimentos. Aos huguenotes, quase um quinto da população, foram conferidos direitos religiosos de culto em muitas áreas, exceto num raio de trinta quilômetros ao redor de Paris; direitos civis (tribunais próprios, elegibilidade para cargos públicos e direitos políticos); e duzentos vilas e cidades fortificadas. O rei Henri IV foi informado que o papa ficou “inconsolável” com o Edito, por conceder ‘liberdade de consciência a todos – a pior coisa do mundo’. O Edito expressava a convicção, muito moderna para a maioria, de que a aceitação da diversidade religiosa era necessária para a preservação da paz.
O que fora um consolo e compensação tardia para os huguenotes, parecia trazer aos sensatos várias lições, das quais três se sobressaiam: uma advertência quanto ao mal da intolerância e o desrespeito aos direitos da pessoa humana; o perigo de associações ilegítimas entre a igreja e o estado; e a inspiração que vem tanto do heroísmo dos oprimidos por causa de sua fé, como da coragem dos politiques que, mesmo correndo riscos, colocaram-se ao lado da tolerância e da unidade nacional.
A despeito dessas lições, um tanto evidentes, a intolerância ganhará terreno novamente e cerca de um século mais tarde o decreto será revogado. Em 1685 o Edito de Nantes será revogado por Luís XIV, o que ocasionará um grande êxodo de quase trezentos mil huguenotes para outros países da Europa e para os Estados Unidos. Os poucos que permaneceram na França ficaram conhecidos com ‘A Igreja no Deserto’.
[1] Emmanuel de Broglie (2000) utiliza adequadamente a expressão “questão protestante” para o caso francês. Ao longo de toda a história do movimento protestante na França, as perseguições e dificuldades praticamente nunca deixaram de existir. Vale lembrar que o Edito de Nantes que marcou o fim das Guerras de Religião foi revogado em fins do século XVII e mais de 250.000 (duzentos e cinqüenta mil) huguenotes tiveram de deixar a França. Na verdade, as perseguições continuaram até o fim da revolução francesa, já no final do século XVIII, quando os protestantes tiveram finalmente a igualdade de direitos com relação ao restante da população francesa.
[2] L’affaire des placards – Na noite de 18 de outubro de 1534, cartazes da autoria de Antoine Marcout (pastor de Neuchatel, Suíça) que falavam contra a missa católica foram afixados em várias cidades francesas. Um desses cartazes foi afixado na porta do quarto do rei François I, em Amboise. Em resposta a essa ‘provocação’, o rei declara abertamente sua fé na Igreja católica e inicia uma grande perseguição aos protestantes na França. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63).
[3] Segundo Josèph Chartrou-Charbonnel (1936), o termo ‘huguenote’ será inicialmente utilizado na França por volta de 1551 na região de Tours e sua origem parece ter vindo da Alemanha onde eidgenos (ligado por juramento), na pronúncia genebrina torna-se eiguenot, surgindo daí a expressão que designa o grupo calvinista francês. (p. 186). Dominique Gaussen (1998) afirma que o termo vem de eidgenossen, que seriam os confederados sob as ordens de Genebra. (p. 6).
[4] A seita data do século XII, fundada por Pedro Valdo em 1170. Em 1530 seus remanescentes aderem à Reforma. As perseguições iniciadas em 1540 chegam ao máximo em 1545, quando uma expedição militar enviada contra eles dizima a população de várias aldeias e vilas. Calcula-se em cerca de 5.000 o número total de vítimas.
[5] Catarina de Médicis, esposa de Henri II, era filha do florentino Lourenço de Médicis e sobrinha do papa Clemente VII.
[6] François II (embora jovem) casou-se com Maria Stuart, filha de Jacques V, rei da Escócia e de Marie de Lorraine, irmã do duque de Guise. Após a morte de seu esposo, Maria Stuart terá reativado o seu direito ao trono escocês.
[7] Émile Leonard (1955), baseando-se em D’Aubigné, historiador da época, chama este período de “primeira Saint-Barthélemy”, no qual “3.000 vítimas foram apunhaladas, esquartejadas, lançadas de precipícios, estranguladas, espancadas até a morte, queimadas, enterradas vivas, afogadas, sufocadas, e deixadas a morrer de fome”. (p. 30).

[8] Janine Estebe (1968) apresenta numa pesquisa detalhada os seguintes dados: em 1661, Pèrefixe, preceptor de Luís XIV, na sua obra Vie de Henry IV dá o número de 100.000 mortos. Por outro lado, em 1758, o abade de Caveirac, na sua Dissertation sur la journée de la Saint-Barthélemy, afirma que o número total foi de 1.000 mortos. Entre esses dois números extremos há vários outros: Ainda no século XVI, Sully indicou 60.000 mortos; Michelet e o historiador oficial de Thou apontam 30.000; em 1630, o historiador italiano Davila indicou como sendo 10.000 os mortos no massacre; Bossuet, no século VXII afirmou que foram 6.000. Em síntese, por tudo o que se lê, tendo em consideração ao fato de que famílias inteiras foram mortas, corpos foram enterrados, jogados nos rios e até queimados; e os vitoriosos no sentido material e físico foram os do partido católico apoiados pelo rei, o número correto deve ser significativamente maior do que os historiadores católicos tentam demonstrar e certamente menor do que os cálculos feitos com influência protestante. (p. 18- 19).
[9] De acordo com as várias fontes de diferentes cidades onde houve registros do massacre, é praticamente seguro afirmar que devem ter morrido pelo menos cerca de 30.000 protestantes. J. H. Burns (1994) não chega a um número decisivo. (p. 207).

[10] A Liga católica será alvo de diversos estudos específicos que tentam desvendar suas reais motivações. Vale mencionar as recentes obras de Élie Barnavi, Le Parti de Dieu. Etude Social et Politique de La Ligue Parisienne. Louvain, Nauwlaerts, 1990; de Robert Descimon, Qui etaient les Seize? Mythes et relités de la Ligue Parisienne, Paris, Klincksieck, 1983 e de Jean-Marie Constant, La Ligue, Paris, Fayard, 1996.
[11] Bastava a Henri III ter um filho para impedir a ascenção de Henri de Navarre, mas ele não tinha nenhum herdeiro do sexo masculino.
[12] Neste ano, o papa Sixto cedeu às obsessões dos Guise (diga-se Liga) e Editou uma bula excomungando Henri de Bourbon e o príncipe de Condé. Hotman foi encarregado de responder a esta intromissão e escreveu Brutum Fulmen que aparece sem nome de autor em 1585.
[13] Os historiadores reconhecem o fato, mas não incluem o cardeal de Bourbon como um dos reis da história da França.
[14] Após a morte do cardeal de Bourbon, rei por alguns meses, a Liga “encoraja a idéia de uma monarquia verdadeiramente eletiva, para finalmente descobrir que suas tentativas de escolher um dirigente católico estavam sobrecarregadas pelas rivalidades de seus próprios chefes aristocráticos”. (JANET, 1971, p. 200).
[15] Hugues Daussy (2002) admira-se do pouco questionamento feito pelos historiadores de como os protestantes, em tão menor número, puderam resistir por tanto tempo à maioria católica e ao tão grande poder da Liga: “Não seria interessante perguntar por qual milagre os reformados puderam resistir a este desencadeamento da violência católica, tão freqüentemente destacado pelos historiadores – como eles puderam conseguir fazer face à determinação e ao poderio militar de uma Liga sustentada pelos espanhóis? Enfim, por qual força eles puderam lutar e se defender com um sucesso tal que finalmente conseguiram arrancar a concessão de um Edito legalizando uma existência que havia sido negada por quarenta anos (...)?” Ele mesmo responde ao dizer que os historiadores exaltam excessivamente a figura de Henri IV, distorcendo a verdadeira história. Para ele “crer que o futuro rei Henri IV tenha podido sozinho assegurar a defesa dos interesses reformados de 1576 a 1589 seria deformar a realidade”. (p. 19). Ele completa: “se a França esteve entregue por quarenta anos às guerras civis ou guerras de religião, é porque existia, em face de uma grande maioria de católicos, uma importante minoria de protestantes”. (p.17).

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