segunda-feira, 6 de maio de 2013

Uma Aventura de Carro pelos Caminhos da América do Sul - Capítulo XII - Brasil Norte


CAPÍTULO XII

BRASIL - NORTE

"Amo tanto a liberdade que tudo que amo deixo livre. Se voltarem é porque as conquistei, se não voltarem é porque nunca as tive". A. de Saint Exupery
  
            Bem na fronteira da Venezuela com o Brasil vimos que aquele asfalto lisinho e gostoso tinha acabado. E também havia acabado a parte castelhana da aventura.
            Brasil de novo. Que alegria. Para alguns esta terra não vale nada, mas para outros é tudo. Nós estávamos vibrando por voltar a nossa terra, nosso povo, nosso lar, nossa língua, mas também voltávamos com uma visão diferente de mundo e mesmo de Brasil. Cada dia que passamos lá fora, em contato com as pessoas, conhecendo novas cidades, novos lugares, passando por montanhas e vales, desertos, enfrentando problemas, foram dias de enriquecimento e crescimento para nós. E a despeito de todos os problemas que temos em nosso país, nós voltamos gostando mais dele e mais dispostos a lutar para melhorá-lo.

            Na fronteira vimos um monumento de amizade inaugurado pelos presidentes dos dois países. Coincidentemente os dois foram afastados através de um impeachment por suspeita de corrupção. Mas os homenageados nos monumentos são heróis e não serão esquecidos. Dom Pedro I e Simon Bolivar. Fizemos algumas reflexões na fronteira e entramos no Brasil. A BR 174, estrada de terra, até que não é das piores. São cerca de duzentos quilômetros desde a fronteira até Boa Vista. Só os primeiros quarenta quilômetros merecem um cuidado especial. Mas dali em diante deu para colocar até cento e vinte e levantar aquele poeirão. Após alguns trechos de mata amazônica, passamos por alguns campos aparentemente muito adequados para a pecuária. Embora possa ter um grande potencial de produção agropecuária, mais da metade de Roraima é de reservas indígenas. Portanto terras intocáveis. Mas parece que os garimpeiros não pensam assim. Não estão preocupados se foram os índios que chegaram primeiro aquele lugar. Querem ouro e parece que naquele lugar tem. E muito.
            Por volta do meio dia do nosso 30º dia de viagem chegamos a Boa Vista. Foram 27 dias e 17.545 quilômetros fora do Brasil e longe das cidades brasileiras. Boa Vista foi para nós o Brasil de braços abertos a nos receber de volta. Comemorações à parte, fomos procurar um bom restaurante para almoçarmos, pois a barriga esta lá nas costas.
            Após o almoço fomos até a TV Macuxi e apresentamos o Projeto América do Sul. Após sermos muito bem recepcionados, fomos entrevistados pela senhorita Juceliana Gonçalves no programa Camarim. Desejaram-nos sorte no restante da nossa viagem, pois ainda faltava muito até São Paulo.
            De Boa Vista poderíamos ir até Lethem na Guiana. Mas fomos informados que de Lethem a Georgetown a estrada estava impraticável, devido as muitas chuvas. Seguimos então até Caracaraí, já sabendo que de Caracaraí a Manaus teríamos que ir de balsa, pois até caminhões estavam retornando por causa das chuvas e atoleiros.
            Chegando a Caracaraí pensamos que tudo seria rápido. Era o dia 26 de julho e começamos uma procura pelo homem da balsa. Embora a cidade dependa disso, gastamos horas para descobrir quem era ele. Aí começou uma epopeia que durou quatro dias até a saída da balsa rumo  a Manaus. Nesses quatro dias de espera e de vai-ou-não-vai conhecemos um casal de americanos do Wyoming, Ryan e Cyndi Dutcher. Aventureiros, eles desembarcaram em Caracas com o sonho de atingir a Terra do Fogo de bicicleta. Haviam pedalado desde Caracas até Boa Vista, mas como nós, descobriram que só poderiam atingir Manaus de balsa. Eles arranhavam algumas palavras em espanhol e praticamente nada em português. E como na vida uma mão lava a outra, começamos a treinar o nosso inglês dando algumas orientações para eles.
            Os quase quatro dias que passamos em Caracaraí deixaram-nos apreensivos. Poderíamos, em condições normais ter avançado até quatro mil quilômetros. E um atraso significativo poderia ter consequências inesperadas em São Paulo, nosso alvo final. É que o diretor do colégio onde o Márcio e eu trabalhávamos poderia não compreender o que tudo aquilo representava para nós e mesmo para a escola. Mandamos um telegrama para o diretor geral e procuramos não pensar nisto e aproveitar os nossos dias conhecendo o povo da terra e falando sobre ecologia.
            Tivemos então o privilégio de conhecer o Deputado Federal Avenir Rosa e o prefeito de Caracaraí, Sebastião Portela. A visão de ecologia do prefeito "Tião" Portela foi intrigante e enriquecedora para nós:
"O caboclo que vive em nossas terras é acusado muitas vezes de atear fogo às matas e poluir os rios. Mas não é bem assim a história. Ele não é ambicioso como muitas pessoas do sul. Ele planta o suficiente para comer. Pesca o suficiente para comer, e vive feliz - pés descalços, duas mudas de roupa, um barraco. Sua mulher e seus filhos também são felizes. Não sonha em ter carros, casas, propriedades. Não tem em sua casa aparelhos eletrônicos, luz elétrica, água encanada e outros itens de conforto. Mas é feliz. Esta é a diferença. Muitos de vocês tem tudo isso, mas vivem angustiados com o trabalho, com a poluição das grandes cidades, preocupados com os bandidos e com a segurança. Querem comprar mais e ter mais. Mas não são felizes. Daí muitos saem lá do sul e vem prá cá para tentar a vida. Querem plantar muito, colher muito, vender muito ou achar muito ouro. Queimam, poluem e no final a culpa cai no homem da terra, que não tem estas ambições. E se algum dia  o caboclo vir a queimar, é porque ele não tem um monte de "boias-frias" para cortar o mato pra ele. O que ele vai fazer? Ficar esperando de braços cruzados que o terreno seja limpo? Nós somos mais pobres, mas poluímos muito menos e conservamos muito mais do que vocês." O recado estava dado.
            Já na balsa, iniciamos a descida de 3 dias do Rio Branco. Estávamos em um grande Rio da bacia Amazônica que é a mais vasta bacia fluvial do mundo, abrangendo uma área de 6,2 milhões de quilômetros quadrados. Banha terras do Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Desse total de 6,2 milhões de quilômetros quadrados, quase quatro milhões encontram-se em território brasileiro. Os centros dispersores de água da bacia Amazônica localiza-se nas Cordilheiras dos Andes (onde nasce o Rio Amazonas), no planalto das Guianas (onde nascem os afluentes da margem esquerda do Amazonas) e no planalto brasileiro onde nascem os afluentes da margem direita. O Rio Amazonas, primeiro do mundo em volume de água e segundo em extensão (o primeiro é o Nilo) é um rio de planície, o que favorece a navegação. Seus afluentes apresentam grande potencial hidroelétrico, pois são rios que descem de planaltos.
            Passamos por reservas indígenas e a área da missão Catrimani. Fizemos amizade com muitos caminhoneiros, enfrentamos um sol de rachar os miolos, vimos o boto uma vez e comemos uma comidinha ruim, mas que dava para descer. Embora os dias custassem a passar na balsa, aproveitamos para descansar e repor as energias para o trecho que faltava. Na chegada a Manaus despedimo-nos dos americanos e dos caminhoneiros como se todos fossemos membros de uma grande família.
            A nossa passagem por Manaus foi rápida. Meio dia desembarcamos sob um frio de 17 graus (raríssimo para a região) e por volta das 13:30h. estávamos almoçando por conta da Silva & Filho. O sr. Paulino Filho, sócio do pai do Binho, nos ajudou a pegar o barco que seguia para Belém. Passamos tão rápido pelo centro da cidade que só deu tempo de conhecer o teatro Amazonas, construído no esplendor da época da borracha. Às 17:00h já estávamos embarcando no "Cisne Branco". O embarque do carro foi uma comédia. Do porto para o barco colocaram duas tábuas e desceram o carro. Só vendo. Parecia que o carro ia cair dentro do rio Negro.
            Com uma hora de viagem vimos o encontro das águas do Rio Negro com o rio Solimões. Um espetáculo de rara beleza. Os rios se encontram, mas as águas parecem não querer se misturar. Ao longe vimos uma queimada.
            Estas queimadas, muitas vezes sem controle, aumentam em muito o desmatamento na região. As áreas desmatadas na Amazônia já somam mais de 250 mil quilômetros quadrados, segundo levantamento e estudos realizados por satélites do INPE. Esta cifra praticamente corresponde à área total do estado de São Paulo.
            Se a devastação continuar nesse ritmo em poucos anos a floresta Amazônica desaparecerá, e isso terá consequências muito sérias, como erosão do solo, entulhamento dos rios pela deposição de detritos trazidos pelas enxurradas, o quíntuplo de enchentes, alterações no ecossistema e no clima além de não trazer nenhum progresso para a população. O grande poder de recuperação da mata Amazônica é que tem impedido uma catástrofe ambiental.
            Como o carro "viajou" junto conosco, no compartimento de passageiros, eu dormia dentro do carro. O Márcio e o Binho dormiram em redes, como todos os outros do barco.
            Foram mais quatro dias de viagem. Conhecemos inúmeras pessoas e vimos lugares e cenas especiais: o rio Tapajós com suas águas transparentes, o estreito de Óbidos (com profundidades marítimas), a largura do rio próximo a Manaus (mais de 10 Km), os grandes peixes no mercado em Santarém ("Filhote" e o "Tucunaré"), o estreito de Breves (só 200 metros de largura) e vários "nascer e por-do-sol". A comida do barco era péssima, mas a tripulação era muito simpática. Conhecemos o garimpeiro João Batista Carvalho, que passou 27 dias preso na Venezuela junto com outros doze garimpeiros. Ele ainda se queixava dos maus tratos na prisão, mas reconhecia que de fato estavam garimpando na Venezuela. Fizemos amizade também com um juíz de futebol, o Sr. Antonio J. S. Oliveira, de Santarém. Ele contava tanta coisa e queria ensinar tanto sobre a Amazonia que tivemos até que anotar para não esquecer.
            Finalmente, no dia 4 de agosto, 39º dia da viagem, chegamos em Belém do Pará. Foram dez dias entre Caracaraí e Belém e 3.100 quilômetros. Culturalmente, foi sem dúvida, um dos trechos mais ricos. Com relação ao ritmo de avanço da viagem, a média caiu muito e com certeza chegaríamos após o início das aulas em São Paulo. Só para se ter uma idéia comparativa, entre o 6º e o 16º dia da viagem nós rodamos 8.645 quilômetros (Viedma - Punta Arenas - Lima). Mas num projeto de viagem deste porte, sabíamos que o tempo era importante, mas não o principal. E o tempo é relativo...
            Pegamos a BR 316 rumo ao Maranhão.

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