segunda-feira, 7 de julho de 2008

As raízes do Contrato no Direito Romano e na Idade Média - 2006

As raízes do Contrato no Direito Romano e na Idade Média
Frank Viana Carvalho

As Vindiciae são uma obra contratualista e toda a abordagem que Mornay faz do contrato (pacto, aliança) tem suas raízes no texto bíblico, no direito romano ou medieval (feudalismo). Assim, há considerável importância no estudo do significado e da evolução do contrato na perspectiva do Direito Romano. Além disso, o Direito Romano é a mais importante fonte histórica do direito nos países ocidentais, ainda que o direito romano “não se apresente como um todo unitário”, mas “como a conjugação de vários sistemas, ou melhor, como um processo evolutivo que nasce, desenvolve-se, atinge o apogeu e decai, até compilar-se no Corpus Iuris Civilis”. (AMARAL, 2003, p. 106).

O contrato não era uma novidade criada pelos romanos. O tema é bem mais antigo e Platão, por exemplo, no livro II de A República, já tratava do assunto. Como vimos, ele se apresentou na sagração e coroação dos reis de Israel. Entre os epicuristas, a idéia também não foi estranha. (CASTRO, 1960, p. 93). Mas certamente ele sofrerá uma significativa evolução nas diferentes relações dentro do império romano.

Dentro do Direito Romano ocorre uma gradual evolução do contrato, sendo que “o contrato dos primeiros tempos se apresenta com fisionomia bem diversa da que o caracteriza, por exemplo, nos períodos clássico e justiniano”. (CRETELLA, 2000, p. 245). O termo contrato, no mais antigo Direito Romano, equivalia ao ato pelo qual o credor “submetia o devedor a seu poder, em virtude do inadimplemento de uma obrigação”. (LOPES, 1989, p. 14). Era conhecido pela expressão contrahere, no sentido de restringir, apertar, contrair. Posteriormente, mas ainda no período anterior à era cristã, surge o gênero conventio, no qual se distinguiam as espécies contractus e pactum.

Os contractus, inicialmente, não podiam existir sem uma exteriorização de forma, e somente três categorias eram utilizadas: a) litteris, que exigiam a inscrição material no livro do credor; b) re, que delimitava com precisão o elemento efetivo do contrato e era ligado basicamente a três relações, o empréstimo de uso, o empréstimo de consumo e o comodato; e
c) verbis, que se validavam com a troca de expressões orais estritamente obrigacionais - dentre as várias palavras utilizadas com muito formalismo, as principais eram stipulatio e promissio (ou promissium).[1]

Em tais categorias, o credor podia exigir o cumprimento do que fora contratado através de uma ação, “fator da mais lídima essencialidade, sem o qual não haveria direito, já que este era nada, se não fosse munido da faculdade de reclamação em juízo”. (PEREIRA, 1996, p. 3). Observe-se que “a solenidade dava força às convenções”. Cada uma dessas convenções, sob certas formalidades, constituía um contractus. Não conhecia, portanto, o direito romano “uma categoria geral de contrato, mas somente alguns contratos em particular”. (VENOSA, 2003, p. 365).

É importante destacar que os romanos não concebiam a idéia de direito subjetivo, mas tão-somente a de actio. Scialoja muito bem sintetiza essa idéia, demonstrando que, “para os romanos, o conceito de direito subjetivo, tal como o entendemos e do qual nos servimos diariamente, era um conceito bem menos acentuado, muito menos usual que no direito moderno; eles falavam muito mais de ações e bem menos de direitos do que fazemos nós. Por exemplo, nós falamos dos direitos daquele que compra e daquele que vende, eles, por outro lado, falavam de actio ex empto e de actio ex vendito. (SCIALOJA, 1954, p. 98-99).

Para a formação da obrigação contratual, não bastava o acordo de vontade das partes sobre um determinado objeto, era imprescindível a observância da forma consagrada através de ritos formais. A razão do formalismo tinha caráter religioso e cultural numa sociedade politeísta e ritualística, além da dificuldade da utilização da escrita.

Os pactum (pacta), por sua vez, eram celebrados sem qualquer obediência à forma, bastando o acordo de vontades. Não sendo previstos em lei, não lhes era atribuída a proteção da actio, ou seja, se uma das partes não cumpria o prometido, a outra não poderia mover-lhe nenhuma ação. A princípio, o pacto (pacta), diferentemente do contrato, não protegia nenhuma das partes, mas, com a atribuição da actio a quatro pactos de utilização freqüente – venda, locação, mandato, sociedade –, surgiu a categoria dos contratos que se celebravam solo consensu, isto é, pelo acordo de vontades. Foi aí o surgimento dos contratos consensuais e como nos outros contratos (verbis, re e litteris), as partes tinham que observar as formalidades previstas. (PETIT, 1974, p. 282).

Mas a figura do pacto continua a existir em várias outras relações de caráter consensual na sociedade romana, inclusive para modificar ou pôr fim a um contrato. Assim como os contratos, os pactos também eram convenções e poderiam ter mais ou menos eficácia se recebessem força do direito Pretoriano ou de alguma Constituição Imperial (isso já no período pós-clássico, 305 a 565 d.C.).

De forma resumida poderíamos dizer que os contratos eram convenções que, desde a época clássica (149-126 a.C. a 305 d.C.), geravam obrigações civis por si mesmos, por força do ius civile. Os pactos, por não terem forma prevista em lei, por não fazerem parte da lista dos contratos, geravam obrigações naturais, e em alguns casos poderiam ter a força de um contrato. No Direito Romano, inicialmente o contractum era concebido como um vínculo jurídico – vinculum juris – cuja obrigação dele decorrente – obligatio – carecia, necessariamente, da prática de ato solene – nexum. A forma constituía elemento essencial do contrato, fosse ele verbis, re ou litteris.


A teoria contratualista na Idade Média



Durante a Idade Média a teoria contratual irá encontrar sua expressão mais aprimorada, fruto das necessidades históricas e das exigências da época. A própria sociedade feudal estava alicerçada sobre a idéia de mútuos contratos ligando todos os seus membros, formando uma cadeia infindável de direitos e deveres recíprocos. Na Idade Média, dois fatores começariam a modificar significativamente a forma do contrato tal como ocorria no direito romano. Primeiro, a generalização da prática dos escribas de fazer constar no instrumento escrito das convenções, a pedido dos contratantes, que todas as formalidades tinham sido cumpridas (ainda quando não o tivessem sido). Era a abolição indireta da sacramentalidade, pois a simples menção da observância da forma tinha maior importância que seu cumprimento efetivo. Segundo, as imperiosas necessidades de uma sociedade cada vez mais mercantil cresceram e isso levou a uma maior utilização de documentos escritos com as especificações contratuais, a tal ponto de quase tornar possível o abandono do formalismo. Nesse período, o contrato começa a se estabelecer como instrumento abstrato, pois se confere força obrigatória às manifestações de vontade, sem a forma exterior exagerada do Direito Romano. (FIUZA, 2006, p. 127).

A forma como o contrato do direito privado se transfere para as instâncias superiores de poder aparece em alguns autores escolásticos e renascentistas. Eles partem do princípio medieval de que o poder provém de Deus. Quanto à extensão desse poder, as opiniões divergem. Almain e Major (por volta de 1510) acreditam que “a comunidade inteira guarda sua potestas (poder) sobre o príncipe que ela instituiu, o que lhe permite depô-lo, se ele governa para destruir o Estado, não para construí-lo”.[2] Teóricos absolutistas do final do século XVI e XVII acreditam que o povo não podia jamais retomar aquilo que ele abandonou para sempre. No primeiro caso, o povo permanece como o verdadeiro soberano, único detentor do poder legislativo, o príncipe ficando submisso às leis e ao controle permanente da assembléia do povo, a qual podia (pelo menos teoricamente) colocá-lo em julgamento e depor o mandatário infiel de sua autoridade.

Torna-se claro por si mesmo que no segundo caso, a soberania estava firmemente estabelecida e podia conduzir ao absolutismo e ao “prince supérior aux lois”. Uma última tese, a mais moderna e que parecia ter recebido mais sufrágios, operando a síntese entre as duas precedentes: era o famoso “regimes mistos”, inspirado da Antigüidade por Aristóteles, Políbio e Cícero, e ao qual São Tomás havia dado sua ilustre caução.
Ele consistia numa mistura harmoniosa e ideal – portanto utópica – dos três sistemas “primários”: monarquia, aristocracia e democracia, realizando entre os três elementos uma ventura de partilhar da autoridade suprema. François Hotman na Franco-Gallia e um dos maiores juristas do século XVI, Charles Du Moulin, aí se encontram.[3]

Qual tenha sido, contudo, o sistema adotado, nele foi comumente admitido que as relações entre o rei e o povo repousavam sobre um fundamente jurídico, um contrato. De onde vem essa célebre teoria contratual chamada a uma maior sorte? Com quem e quando o contrato das relações entre indivíduos evoluiu para um contrato público de relações entre o povo e seus governantes? Gierke (1914, p. 169) e Carlyle (1909, p. 168) situam o início desse tipo de contrato através de Manegold de Lautenbach no século XII, ao tempo da disputa das Investiduras. Além disso, o alemão Gierke assegura que “esta doutrina se estabelece sobre numerosas reminiscências da historia do direito germânico e sobre a forma contratual dos acordos que os príncipes e os Estados haviam dado a muitas relações do direito público”. (idem). Os mesmos autores afirmam que esta transposição também se deu pela “autoridade da Santa Escritura que fala de um contrato ocorrido em Hebrom entre Davi e os tribos de Israel”. (idem). Carlyle então pergunta se “não poderíamos igualmente conceber a transposição do contrato feudal na relação rei-povo todas as demais coisas - o rei mantendo o lugar do senhor, o povo, o lugar do vassalo?” (p. 99).

Certamente, não se trata de concessão de feudo - elemento primário das relações feudo-vassálicas - mas bem se tratava, num caso como no outro, de obrigações recíprocas nascidas de um contrato ‘sinalagmático’ (situação na qual ambos têm o mesmo status), confirmadas pela declaração das duas partes, o rei que se compromete a governar o seu povo, e este, a obedecer ao rei.

Mas o rei se encontrara então colocado como senhor, em situação de superioridade no que diz respeito ao povo submisso, o que exprime bem a qualificação dada pelos escolásticos a este contrato, pactum subjectionis, pacto de submissão, pondo assim a ênfase sobre a obrigação de obediência do povo para com o rei. Duas observações são importantes aqui de acordo com Henri Morel (1979): a primeira é que não parece que nenhum comentarista tenha tentado dar uma análise jurídica, clara e precisa do pactum subjectionis de acordo com os critérios do direito romano (a discussão era apenas para saber se se tratava de uma obrigação civil ou natural); a segunda é que o espírito essencialmente pragmático dos juristas franceses não os forçava no caminho de tais especulações, mais ou menos irrealistas[4] e que, seguramente, aos olhos deles, não correspondia à realidade dos fatos e da constituição da monarquia francesa. (p. 288). Em 1481, portanto sob as reminiscências do pensamento escolástico e medieval, Balde afirma que “o príncipe está obrigado não somente naturalmente, mas civilmente em virtude de um contrato”. E continua “eu afirmo de maneira indubitável, que o príncipe está obrigado por seus contratos civil e naturalmente”. (IMBERT, J., MOREL, H. e DUPUY, R. J., 1969, p. 122).

Há também exemplos acadêmicos e jurídicos da figura do contrato ou pacto advindos da escolástica durante a Idade Média. Kantorowicz (1998) chega a dizer que a metáfora do casamento secular, que exemplica o tipo de relação pactual que deveria existir entre o príncipe e o reino, com responsabilidades para ambas as partes, tornou-se mais popular na Baixa Idade Média quando, sob o impacto de analogias jurídi­cas e doutrinas corporativas, a imagem do casamento do príncipe com seu corpus mysticum, isto é, com o corpus mysticum de seu Estado passou a ser constitucionalmente significativa:
“Seria difícil dizer quando e onde ou por meio de quem a metáfora canonista foi inicialmente transferida para o pensamento político-legal secular. Pode ter sido muito comum por volta de 1300, quando Ciro de Pistóia, por exemplo, a expressou de um modo mais ou menos casual em seu comentário ao Código de Justiníano. Ao discutir a medida do poder atribuído a um imperador eleito, considerou a eleição do Príncipe por parte da república e sua aceitação da escolha como uma espécie de contrato ou consentimento mútuo, similar àquele em que se baseava o matrimônio e, em seguida, estendeu-se brevemente sobre essa comparação que, evidentemente, o impressionava, já que a considerava digna de nota. E a comparação entre o matrimônio corporal e o matrimônio intelectual é boa: pois, tal como o marido é chamado defensor de sua esposa [...] assim também o imperador é o defensor dessa república.” (KANTOROWICZ, 1998, p. 136).

Como se vê, a construção de uma teoria contratual de governo não teve um início com linhas formais, mas passou por caminhos e práticas isoladas ao longo da Idade Média. Ao advir o século XVI, embora a construção prática e teórica do contrato entre o rei e o povo ainda não estivesse bem estabelecida, e mais, não apresentasse regras claras que exigiam necessariamente obrigações para o soberano e muito menos sua sujeição à lei, essa herança contratual começava a ser cada vez mais desejada nas relações entre o povo e o soberano. A dificuldade é que isso ocorre no mesmo momento em que as monarquias de caráter absolutista começavam a se consolidar na Europa. Coube então aos monarcômacos chamarem para si a tarefa de construir uma completa teoria contratual do ‘contratualismo’ em um momento sensível e turbulento. Estabelecer uma proposta contratual em fins do século XVI era bater de frente com o modelo monárquico vigente. Ou seja, dizer que o rei deveria se submeter às leis do reino como todos os outros cidadãos equivalia dizer que ele era exatamente igual aos seus súditos – algo difícil de aceitar para alguns juristas e especialmente para os soberanos.

A partir dos monarcômacos, os contratualistas vão conhecer um desenvolvimento crescente, que culminará no XVIII século, com Jean-Jacques Rousseau, em seu Contrato Social. O caminho não será simples, pois algumas propostas se aproximarão mais e outras menos das teorias dos revolucionários quinhentistas e seiscentistas. Para citar os principais nomes, a trajetória irá desde Grotius e Pufendorf, em caminhos jusnaturalistas, passando por Locke e Hobbes, com propostas mais consistentes, quando finalmente chegaremos a Rousseau, na mais moderna e clara abordagem da teoria contratual de governo. As contribuições serão diversas, mas quando chegarmos ao pensador iluminista, não haverá um duplo contrato, nem fiador no direito civil, nem estipulação, nem contrato ‘sinalagmático’ – será um contrato de natureza particular, onde a origem, bem como a natureza do poder, escapam definitivamente da influência do direito privado.

[1] Promissio: prometer; Promissium: coisa prometida.
[2] Citado em J. Imbert, H. Morel, R..J. Dupuy, La pensée politique des origines à nous jours, coll. Thémis, Paris 1969, p. 141.
[3] “Reino da França, é a Monarquia com um tempero, composição e temperatura da Aristocracia e Democracia dos Estados...” (idem, p. 144).
[4] J. Declareuil (1925) observou bem que “a ideologia não teve nenhuma parte na construção jurídica sobre aquela que os legisladores e os reis estabeleceram na constituição da monarquia”. (p. 390). No máximo pode-se encontrar uma alusão à teoria do contrato numa passagem do Songe du Vergier (1378): “Pois quando cada um realiza suas coisas pode colocar determinada lei ou mesmo uma condição que lhe agrada. Também uma pessoa quando faz um rei sobre si, e submete as pessoas e os bens a ele como soberano, pode colocar uma lei ou condição, ou seja, aquilo que lhe for mais razoável.” (IMBERT, J., SAUTEL, G. e BOULET-SAUTEL, 1956, p. 131). Em contrapartida está o célebre discurso de Philippe Pot aos Estados Gerais de 1484, o qual afirmou que a soberania do povo e a eleição dos reis não têm relação entre si. (MOREL, 1979, p. 288).

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