A Educação da Liberdade
Conferencia
apresentada no 28º Congresso Suíço dos Professores em 8 de julho de 1944 em
Berna.
A sociologia nos ensina que a liberdade individual é um valor cujo aparecimento foi tardio. As sociedades ditas “primitivas” repousam quase que inteiramente sobre a subordinação das gerações jovens aos “antigos” e sobre a submissão geral, dos velhos assim como dos jovens, à tradição e à vontade dos ancestrais. Nas sociedades orientais e nas sociedades antigas, que conheceram o “patriarcado”, os filhos permaneciam menores enquanto o Pater familias estivesse vivo. Em nível político, as múltiplas formas da repressão social exerceram durante séculos e até mesmo milênios, uma variedade infinita de pressões intelectuais, morais e jurídicas, sobre a consciência e a conduta dos indivíduos. A vida social exigiu durante muito tempo da pessoa humana o conformismo obrigatório e a submissão cega e heterônoma.
Quando a cooperação começou a
vencer a repressão, a liberdade individual tornou-se um valor necessário. A
cooperação é o conjunto das interações entre indivíduos iguais (por oposição às
interações entre superiores e inferiores) e diferenciados (por oposição ao
conformismo obrigatório). Do ponto de vista sociológico, a cooperação
organizou-se em correlação com a divisão do trabalho social e com a
diferenciação psicológica dos indivíduos resultante. A cooperação supõe
então a autonomia dos indivíduos, isto é a liberdade de pensamento, a liberdade
moral e a liberdade política.
Mas é preciso
compreender que a liberdade, que surgiu da cooperação, não é a anomia[1] ou a anarquia[2]; ela é a autonomia; isto é a
submissão do indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à
constituição da qual ele colabora com sua personalidade.
I
Isso posto, a educação da
liberdade supõe primeiro uma educação da inteligência e mais especialmente, da
razão.
Não é livre o
indivíduo submetido à repressão da tradição ou da
tradição reinante, que se submete de antemão a qualquer
decreto da autoridade social, e assim, permanece incapaz de pensar por
si próprio. Também não é livre o indivíduo cuja
anarquia interior o impede de pensar e que, dominado por sua
imaginação ou fantasia subjetiva, por seus instintos e sua afetividade, oscila
entre todas as tendências oscilatórias de seu eu e de seu inconsciente.
É livre, no entanto, o indivíduo que sabe julgar,
e cujo espírito crítico, sentido da experiência e necessidade de coerência
lógica se colocam ao serviço de uma razão autônoma, comum a todos
os indivíduos e que não depende de nenhuma autoridade externa.
Porém, a vida escolar
tradicional não dá quase nenhum preparo para esta liberdade
intelectual, pois ela é freqüentemente dominada por uma espécie de autocracia
ou de monarquia absoluta, que se confunde às vezes com uma monarquia de direito
divino. O professor da escola, que não luta ele próprio contra esta tendência
espontânea (tendência que emana dos alunos, tanto quanto do comportamento do
professor) corre o risco de ser o símbolo do saber e da
verdade estabelecida, da autoridade intelectual e da 'tradição dos antigos'.
É preciso ensinar os alunos a pensar, e é impossível aprender a pensar num regime autoritário. Pensar, é procurar por si próprio, é criticar livremente e é demonstrar de forma autônoma. O pensamento supõe então o jogo livre das funções intelectuais, e não o trabalho sob pressão e a repetição verbal.
Não é suficiente preencher a
memória de conhecimentos úteis para se fazer homens livres: é preciso
formar inteligências ativas.
Ora, a
condição sine qua non[3] desta formação é o
desenvolvimento da atividade dos alunos na própria escola. É preciso que o aluno faça pesquisas por ele
mesmo, possa fazer experimentos, ler e discutir com iniciativa suficiente e não
aja simplesmente sob encomenda. Alguns setores do ensino inclusive funcionariam
até melhor com isto: aprende-se a dominar melhor sua língua materna elaborando trabalhos pessoais em vez de
memorizar a gramática, e haveria um número maior de alunos entendendo
matemática se eles pudessem fazer
experimentos com problemas reais (de física elementar, de geometria e
vinculada a construções materiais) como as ciências faziam no Egito e no Oriente
antes que os Gregos tivessem descoberto a dedução abstrata.
E, no nível da abstração,
ensinar-se-ia aos adultos a dominar melhor a razão deixando-os descobrir as demonstrações lógicas em vez de ensiná-las
a eles. Mas esta educação da liberdade intelectual supõe a cooperação e
a pesquisa em comum. As relações existentes entre o aluno e o
professor são insuficientes deste ponto de vista, já que 'o professor' é igual
a ‘autoridade’. E é indispensável que os
alunos possam trabalhar em comum e discutir
livremente a certas horas do dia se o objetivo for educar o espírito
crítico e o significado das provas. É preciso haver uma vida social espontânea
na própria escola, senão o aluno individual só poderá escolher entre a
submissão à autoridade ou a anarquia individual, os dois extremos da verdadeira
liberdade.
II
O que nos conduz ao problema da liberdade moral ou social.
Na educação tradicional, a
criança é submetida a maior parte do tempo, ou à autoridade dos pais que
impõem normas e tarefas, ou bem à autoridade do professor que
o disciplina por outras normas e novas tarefas. Resulta daí uma moral
de obediência ou de heteronomia que, se fosse tomada ao pé da letra,
conduziria ao mais rigoroso conformismo social. O resto de seu tempo, a criança
escapa, de forma real ou imaginária, para construir um mundo próprio que, se
este vingasse, o conduziria ao devaneio solitário ou ao egocentrismo anárquico.
Mas existe a vida,
e na vida, existem os amigos e as relações sociais entre
crianças. (...) É nesta atmosfera de cooperação que se desenvolve a
autonomia, por oposição ao mesmo tempo à obediência heterônoma e à
anarquia. Para as crianças, é verdade, a regra do jogo transmitida pelos
adultos é ainda sagrada e intangível, ao passo que para os adultos ela pode ser
em parte modificada e interpretada, mas por consentimento mútuo e decisão
comum. E a educação da liberdade na disciplina autônoma que se faz desta forma
no jogo coletivo, nos esportes, no escotismo e de maneira geral na vida social
entre iguais[4].
Por que a escola não tiraria então
proveito destas possibilidades que revela o estudo psicológico do
desenvolvimento moral e social das crianças? Aqui ainda, isto depende
antes de tudo da atitude do professor. (...) É preciso então inspirar-se de
um ideal democrático já na escola, e não em palavras ou “lições”, mas na
prática e na vida real da classe.
Há muito tempo dois tipos de métodos já
tentaram utilizar a vida social das crianças entre elas na educação intelectual
e moral dos alunos: é o método do “trabalho em grupo” e a do “self-government”[5].
O método do trabalho em grupo consiste numa organização de trabalhos em
comum. Um certo número (quatro ou cinco, por exemplo) se junta para
resolver um problema, recolher a documentação de um tema de história ou de
geografia, para fazer uma experiência de química ou de física, etc.. A
experiência mostra que os fracos e indolentes, não são
abandonados à própria sorte, são então estimulados e mesmo obrigados
pela equipe, enquanto os adiantados aprendem a explicar e dirigir, muito
melhor do que se permanecessem na situação de alunos solitários. Além
do benefício intelectual e da crítica mútua e
do aprendizado, da discussão e da verificação,
adquire-se desta forma um sentido da liberdade e da responsabilidade
conjuntas, da autonomia na disciplina livremente
estabelecida.
O método do
“self-government” consiste por sua vez em
atribuir aos alunos uma parte de responsabilidade na disciplina escolar. A
aplicação flexível e podendo variar de uma simples atribuição pelo
professor de funções limitadas a alguns alunos (supervisões diversas
referentes ao local, aos vestiários, bibliotecas, etc) a uma autonomia
real na classe (organização da disciplina pelos alunos, julgamentos
por eles mesmos de casos de fraude e trapaça, etc..) ou nas atividades
extracurriculares (organizações de cooperativas escolares, de clubes
de leitura ou de esporte, etc) o método incitou uma série de aplicações
diversas e estudos conhecidos por todos.
Estes ensinamentos não podem
nos deixar indiferentes no que diz respeito à formação de cidadãos livres numa
democracia sadia. Seu resultado, em todo lugar onde estas experiências foram
feitas com seriedade, foi de reforçar ao mesmo tempo o espírito de
comunidade e o sentido da liberdade responsável. Em particular é interessante
notar que alguns Estados totalitários calcularam tão bem as vantagens de alguns
destes métodos educativos que utilizaram certos aspectos para apoiar os
movimentos da juventude. Com toda certeza seria lamentável que a mais antiga
das democracias não entendesse a vantagem que se pode tirar disto - e de
maneira mais direta ainda - para a educação da liberdade e do próprio espírito
democrático.