CAPÍTULO
VI
ARGENTINA
DE NOVO
"Se és
capaz de arriscar numa única parada tudo quanto ganhaste em toda a tua
vida...". Rudyard Kipling
Novamente em Gallegos, passamos na
casa da sra. Nikolaus, que nos deu um gostoso jantar às 23:00 hs. Conversamos um
pouco e saímos dali às duas da manhã para avançarmos para Comodoro Rivadávia.
De acordo com o nosso cronograma estávamos um dia atrasados e precisávamos
recuperar seguindo direto.
Para nossa alegria, muita da neve
que encontramos na ida para o Sul, agora
havia descongelado e não necessitamos fazer muito uso das correntes. Neste
trecho o Binho atropelou um coelhinho "atravessador" de estradas.
Na nossa rápida passagem por
Comodoro, compramos líquido anticongelante e seguimos rumo à Cordilheira dos
Andes. Sabíamos que íamos encontrar muito frio.
|
Um trechinho rural de Bariloche, perto da Cordilheira. |
Uma inquietação reinava dentro de
mim: e se o frio da Cordilheira dos Andes for mais intenso do que o que podemos
suportar? De início, tudo bem, pois já estávamos enfrentando frio há uns dez
dias. Mas eu sabia que o avanço no gelo e na neve seria lento e a nossa
experiência nestas situações era apenas de iniciantes.
Vamos
lá, pensei comigo: para todo problema existe uma solução. Poucos quilômetros
depois de de Comodoro já começamos a subir. Montanhas e mais montanhas numa
sucessão interminável. Assentado no banco traseiro, eu podia contemplar à
vontade aquela magnífica paisagem. Lá pelo final da tarde surgiu a
pré-cordilheira: altas montanhas, algumas cobertas de neve, outras pelos
pinheiros e vegetação de altitude. Começaram a aparecer a nossa frente e a
nossa esquerda, pois já tomávamos rumo noroeste.
A
noite chegou e com ela a chuva. Tínhamos receio de que nevasse, embora
soubéssemos que não teríamos escolha nos Andes. Evitávamos paradas longas, pois
a simples abertura das portas esfriava o interior do veículo. A
chuva parou, mas em breve retornou trazendo mais frio. Nosso pequeno aquecedor
a gás já estava no seu segundo e último bujãozinho descartável. A previsão inicial,
segundo o vendedor, é de que ele durasse umas dezoito horas. Mas o primeiro não
durou nem seis e isto também nos preocupava. Chegamos em Esquel por volta das
nove da noite e nos alegramos, pois dali até San Carlos de Bariloche são apenas
uns duzentos quilômetros. Entretanto, a partir daquele ponto encontramos alguns
trechos de estradas de terra que iam ficando cada vez mais frequentes e longos,
até que esta era a nossa única opção até Bariloche. Inúmeras poças d'agua na
esburacada estrada faziam-nos parecer que estávamos em um rali na selva.
O cansaço já não era muito suportável e para
quem estava dirigindo tornava-se cada vez mais importante que o companheiro do
lado estivesse acordado. Chuva de novo, e o frio aumentava. De repente surge a
temida neve, cobrindo toda a estrada. Neste primeiro trecho foi possível
avançar sem correntes. O carro dançava na estrada congelada e a densa escuridão
daquelas montanhas só era cortada pelas luzes do nosso farol. Poucas vezes
cruzamos com outros carros naquela região. Embora parecesse que seguíamos rápido,
a noite se mostrava longa e o nosso alvo mais distante. A neve aumentou e
tivemos que parar e colocar as correntes. Nevava muito e o frio fora do carro
era insuportável. Quem desceria para colocar as correntes? Antes que
começássemos a analisar a situação, o Binho prontamente se dirigiu para fora do
carro e foi pegar no porta-malas o instrumento indispensável para aquela
situação.
Mortos de sono, já quase não
falávamos nada. Correntes no chão, o Binho manda manobrar o carro: - Um pouco
mais pra frente!... Agora para trás!... Tá bom! de novo! Aiii! Um grito de dor.
E quase teve a sua mão atropelada. Ficou muito bravo e não vale a pena
relembrar os impropérios que o coitado disse com a mão dolorida. Finalmente as
correntes ocuparam o devido lugar e saímos dali. O Binho voltou com as mãos
quase congeladas. Dava dó. Pegou o aquecedor e aquecia alternadamente as mãos.
Depois foi o Márcio, que também batia queixo naquela hora. Usávamos todas as
blusas que tínhamos direito e os cobertores também.
Aí surge um trecho de asfalto.
Vibramos, já devíamos estar chegando. Mas ainda seguimos quarenta quilômetros
antes de chegarmos a esperada Bariloche. Com receio de que surgisse neve
novamente, embora os primeiros quilômetros de asfalto não dessem indícios de
sua presença, não tiramos as correntes. Parece incrível, mas arrastamo-nos a
quarenta quilômetros por hora até chegarmos àquela bonita cidade turística.
Chegamos em San Carlos de Bariloche.
A cidade dos esquiadores e amantes do inverno na América do Sul. Era meia noite
quando atravessamos o centro da cidade.
Como estávamos bem perto da
fronteira decidimos completar o tanque e aproveitar o preço da gasolina. Desde
que havíamos saído de Viedma, uns cinco dias antes, pagávamos apenas metade do
preço pelo combustível. É que a lei argentina prevê custo reduzido para o sul
do país, a fim de implementar o turismo e o desenvolvimento da região. Assim,
abastecíamos apenas com a gasolina especial, de maior octanagem. Na hora de
pagar em Bariloche levamos um susto: por ser uma cidade puramente turística e
desenvolvida, aquela lei já não prevalece ali. Pagamos caro por um pequeno
descuido.
Deixamos a bela cidade, já dirigindo
há três dias sem parar. Seus belos prédios em estilo europeu e suas ruas
calçadas com paralelepípedos foram ficando para trás. Ainda havia muita gente
na rua quando saímos dali à uma da madrugada. Seguimos, com correntes, embora
as ruas de Bariloche não estivessem cobertas com neve.
Naquele ponto eu dirigia, e percebi que os dois rapazes
dormiam. O cansaço era insuportável e conduzi por apenas uns trinta e cinco
quilômetros. Parei do lado da estrada às duas da manhã e uni-me a eles num
ronco gostoso. Às cinco e meia despertei e dirigimo-nos para a fronteira com o
Chile. Tiramos as correntes e vimos o 12º dia da nossa viagem clarear,
avançando novamente por estrada de terra.
No posto argentino da fronteira
tivemos a informação de que a estrada que cruza a cordilheira estava coberta de
neve, mas que ocasionalmente tratores trabalhavam removendo-a. Ali a temperatura
estava na casa dos quinze graus negativos e tivemos que trocar o primeiro pneu
furado da viagem. Enquanto trocávamos o pneu, percebemos, o Binho e eu, que
nossas calças estavam se desfazendo em alguns pontos. Depois de gastarmos algum
tempo tentando relembrar o que poderia ter motivado aqueles furos, descobrimos
a causa.
- Foi quando estávamos em Rio Gallegos e
pegamos aquela bateria emprestada! Disse o Binho.
- Tem razão! Ainda bem que temos outras roupas
por baixo! Completei! Dando risadas.
Seguimos para a temida travessia às
oito e meia da manhã. Apenas uns cinco quilômetros e já tivemos que colocar
novamente as correntes. A neve caia como em filmes de natal e o Binho resolveu
se divertir um pouco. Pegou o seu skate, que já estava sem as rodinhas e
deslisava pelas encostas cobertas de neve em uma montanha próxima. E enquanto
eu filmava, o Márcio resolveu deixar marcado na neve o nome da sua namorada.
Tudo ali era lindo, mas ao mesmo
tempo, desolado. A paisagem coberta de neve, tudo branco, fazia daquele lugar
um sonho para cada um de nós. Entramos no carro e mais uns oito quilômetros, o
sonho começou a virar pesadelo. A camada de neve era muito grossa, cerca de 30
a 40 centímetros; começamos a ter dificuldades para avançar. O gás do aquecedor
acabou. O Márcio, que conduzia naquela hora, girava o volante de um lado a
outro e acelerava e desacelerava a fim de facilitar o avanço do carro. Só que a
neve ficava cada vez mais espessa e o desgaste da embreagem já se fazia notar
pelo forte cheiro do disco esquentando. Até que houve um momento que não deu
mais. O carro literalmente atolou na neve e ficou preso. Mesmo com as correntes
nas rodas de tração, elas deslizavam, pois o fundo do carro já havia encostado
na neve. Sem o aquecedor, a temperatura do interior do carro caia rapidamente e
passamos minutos angustiosos. Desnecessário émencionar que as muitas histórias
de pessoas que morreram em situações idênticas vieram à cabeça dos três no
mesmo instante. Olhávamos uns para os outros, preocupados e calados. Imaginei
que os dois estivessem me olhando e pensando: e agora homem? Como vamos sair
desta?
Sugeri que descêssemos do carro e
empurrássemos. O Binho achou que não ia dar certo, pois o nosso carro era muito
pesado e a neve escorregadia. Falei então de minhas experiências de empurrar
carros atolados na lama.
- Na roça dá certo! E a lama é escorregadia
também! Falei.
O
Binho aceitou a argumentação e descemos. Empurramos o carrão meio de lado para
forçar as laterais dos pneus contra o cascalho. Pedimos a Deus que nos
ajudasse.
- Um, dois e ...já! O carro saiu sem
maiores dificuldades. Entusiasmado, o Márcio avançou cerca de duzentos e
cinqüenta metros e o Binho e eu saímos correndo atrás. Esquecemos de que
estávamos na altitude e chegamos no carro com "meio metro" de língua
prá fora. Entramos no carro e seguimos agradecidos a Deus pela ajuda num
momento crucial. Um pouco mais à
frente encontramos com alguns carros e um ônibus que vinha em comboio. Aí
comecei a entender a pergunta do policial argentino na fronteira: - Vocês vão
sozinhos? Com receio de que algo de desagradável ocorra, eles atravessam aquele
trecho em comboio para que possam se ajudar mutuamente. Mas a visão dos carros
nos animou. Se eles chegaram até aqui, é
certo que poderemos chegar lá, pensamos. Mais um pouco à frente e vimos,
sucessivamente três tratores limpando a estrada. Naquele trecho havia com
certeza mais de meio metro de neve e o trabalho das máquinas era
imprescindível. começamos a encontrar descidas e sabíamos que a nossa aventura
no gelo e na neve estava prestes a pedir um descanso. Após quarenta quilômetros
de travessia de fronteira, chegamos ao posto fronteiriço do Chile. Já sem neve e
sem correntes.