Delly Danitza Lozano Carvalho (Mestre em Psicologia Escolar)(1)
ResumoO objetivo do presente trabalho é compreender melhor como o desenvolvimento de si, das relações de poder e da subjetividade do ser humano podem ser vistas e compreendidas através do primeiro e primordial meio em que esta se desenvolve, a família. Como um sistema social constituído por subsistemas, que são seus membros e suas relações derivadas, o estudo da família mostra que seus membros estão em contínua interação, exercendo e recebendo influências. Cada indivíduo ou membro desta família adota um modelo de relacionamento e funcionamento que se traduz nos papéis exercidos por cada membro da família.
Abstract
The objective of this work is to understand better how the development of the self, of the power relationships and human being subjectivity can be seen and understood through the first and primary means by which it develops, the family. As a social system consisting of subsystems, which are its members and its relations derived, the study shows that the family members are in continuous interaction, exercising and getting influences. Each individual or member of this family adopts a model of relationship and operation that is reflected in the roles held by each family member.
Quando falamos de desenvolvimento humano, sobretudo em sua subjetividade, não podemos deixar de pensar nos meios em que esta se desenvolve. Obviamente, a instância onde primeiro ocorre a descoberta de si e das relações com o próximo e com o conhecimento é a família. Entretanto, ao se analisar o desenvolvimento, a aprendizagem e as relações interpessoais, e como essas se processam no ser humano, o papel da família tem sido relegado, quando muito, a um segundo plano. Essa abordagem excessivamente ‘escolar’ do processo mostra-se equivocada ao desconsiderar a grande influência e o papel do ambiente familiar e de seus agentes na construção dos modelos e papéis sociais.
Torna-se importante destacar que a idéia de produção da subjetividade pode ser enriquecida pela noção de subjetivação. (Foucault, 1988, 1990). Essa noção costuma vir neste autor precedida das palavras “formas”, “modos”, “processos”, que mostram que o processo de subjetivação nunca está terminado, mas se constitui como um momento contínuo. A partir dessa análise, há várias maneiras diferentes de se subjetivar no decorrer do tempo, em que o sujeito pode fixar, manter ou transformar sua identidade.
A história do homem tem mostrado que é uma necessidade básica o viver em sociedade, e, mais especificamente dentro da sociedade, o viver em grupos. Não há registros de sociedades humanas nas quais o homem não buscou agrupar-se e viver com seus pares. As sociedades variam de cultura para cultura, de período para período, porém uma coisa permanece em todas as culturas: os pequenos agrupamentos com características de auto-sustentação afetiva, social, econômica e cultural, grupos estes que têm sido denominados como família...
A família é um sistema social constituído por subsistemas, que são seus membros e as relações derivadas, os quais estão em contínua interação exercendo e recebendo influências. Cada indivíduo ou membro desta família adota um modelo de funcionamento que se traduz nos papéis exercidos por cada membro da família. Acreditamos que assim como se desenvolve modelos na família, se desenvolve a modelo de aprendizagem, sob os membros da família. Como diz Andolfi (1984), a família é um sistema vivo, em constante transformação, um organismo complexo que se altera com o passar do tempo para assegurar a continuidade e o crescimento psico-social de seus membros.
Relações Familiares
As relações familiares são ditadas ou estruturadas através da repetição dos padrões que se formam pela expectativa e interação constante dos sentidos de ser separado e pertencer dos diversos indivíduos, constituindo assim, diversos subsistemas. Dentro do sistema familiar podemos encontrar então uma variedade de subsistemas: sistema conjugal, sistema parental, sistema fraternal entre outros.
Dessa maneira podemos estabelecer que cada indivíduo pertencente a estes subsistemas construa um sentido de ser separado e de pertencer aos mesmos. Faz-se necessário que se estabeleçam fronteiras no subsistema que defina quem pertence e como se define a atuação de cada indivíduo neste subsistema. (Minuchim, 1980). O estabelecimento dessas fronteiras é que vai determinar como vão acontecer as relações dentro deste sistema. Quando estas fronteiras ou limites não estão claramente definidos ou, quando são definidos com um rigor excessivo, elas interferem no desenvolvimento das relações dos subsistemas, interferindo assim nas relações no sistema familiar. Quanto mais claras e definidas forem as fronteiras dos sistemas e dos subsistemas familiares, mais claras serão aos seus membros as funções por eles a serem exercidas.
Partindo desse ponto de vista, poderíamos também ver na família e sobretudo nas relações entre seus membros a questão do poder, tal como Michel Foucault o analisa. Foucault, ao tratar do tema, rompe com as concepções clássicas deste termo e apresenta-o como uma ‘relação de forças’. Ao ser ‘relação’, o poder está em todas as partes e uma pessoa está atravessada por relações de poder - não pode ser considerada independente delas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. Dentro da família, no processo de construção de relações, temos a presença da disciplina exercida pelos mais velhos (ou superiores) sobre os demais membros. Para ele, “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras". (FOUCAULT, 2005, p. 36). È claro que nas inter-relações cotidianas, existe a questão permanente da disciplina, dos limites, como bem afirmou Minuchim. Mas são construções necessárias que permitirão à criança e aos demais membros da família lidarem de forma melhor e mais satisfatória com as demandas sociais em todos os seus aspectos.
Como disse o próprio Foulcault, “o mais interessante na vida e no trabalho é o que permite tornar-se algo de diferente do que se era ao início”. Como as construções e interações são múltiplas e constantes, o que teremos ao final não é um ‘produto’ certo e determinado. Contudo, é claro que os rumos estão atrelados ao tipo de vivência e de relações que se tem. “O jogo vale a pena na medida em que não se sabe como vai terminar.” (1994, p. 777 e 783).
Funciona na família como na sociedade, um modelo repressor que causará interferências na ‘produção’ da subjetividade, como diria Foucault? Em todo caso, a hipótese de um poder de repressão que nossa sociedade exerce sobre as pessoas revela-se insuficiente se for preciso considerar toda uma série de reforços e de ampliações que uma primeira abordagem manifesta: proliferação de discursos, e discursos cuidadosamente inscritos em exigências de poder; solidificação do despropósito e constituição de dispositivos suscetíveis. É verdade que Foucault enfatiza os aspectos econômicos e o sexo quando apresenta este controle, mas ele também faz referência à família como instância de conflitos de poderes e manutenção das vontades sociais.
Quando se fala da questão sexual, por exemplo, não se trata somente de isolá-la, mas de solicitá-la, suscitá-la, constituí-la em foco de atenção, de discursos e de prazeres; produção forçosa de confissão e, a partir dela, instauração de um sistema de saber legítimo e de uma economia de prazeres múltiplos. Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição, trata-se da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos, saberes, prazeres e poderes. Será que não se trata de um movimento obstinado em afastar o sexo para alguma região obscura e inacessível? Não, talvez não, pois podem ser mesmo os processos que o disseminam na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam-no, fazem-no falar, implantam-no no real e lhe ordenam dizer a verdade: todo um cintilar visível do sexual refletido na multiplicidade dos discursos, na obstinação dos poderes e na conjugação do saber com o prazer. (FOUCAULT, 1993, p. 70-71).
Por Trás da Máscara Familiar
O sentido de pertencer é o que permite ao indivíduo estabelecer uma relação de confiança propiciando-lhe uma plataforma para o desenvolvimento saudável da afetividade. Isso contribui nos seus vínculos sociais, sócio-afetivos, promovendo e desenvolvendo a habilidade de enfrentar e resolver problemas. Nesta relação, o indivíduo sabe que pertence a um pequeno grupo social do qual ele faz parte efetivamente e no qual há padrões de comportamento a partir dos quais ele sabe como e o que esperar em diversas situações. Esse sentido de pertencer permite ao indivíduo recorrer ao acolhimento do vínculo familiar sempre que necessário, esperando pelos padrões pré-estabelecidos que este grupo lhe oferece em situações de perigo, desconforto, ansiedade ou alegria, sucesso, bem estar em atendimento às suas necessidades biopsico-sociais.
Dentro deste vínculo também se faz necessário o sentido da separação, sentido este que permite ao indivíduo ser um subsistema único e intransferível dentro do sistema familiar. É o sentido da separação que permite ao indivíduo delimitar um espaço no qual se possibilita o ser diferente dentro de um sistema igualitário, permitindo-lhe assim o exercício da autonomia.
É o conjunto destes dois sentidos que permite ao indivíduo agir e interagir dentro sistema familiar. É saudável que este indivíduo possa pertencer a um sistema sem necessariamente perder a sua individualidade. (Minuchim, 1980).
Por outro lado, pertencer a um sistema significa submeter-se a ele e participar de suas regras, modelo de convivência e relações interpessoais. Entre outras, uma das necessidades da criança é de ser aceita e correspondida no meio em que está, para continuar a desenvolver-se.
Tem se falado da segurança como uma das necessidades básicas dos indivíduos, como uma das formas de proteger e unir o vinculo familiar. Para Winnicott a segurança é de fato necessária, mas não unicamente como um limite, que exerce sua função acolhedora, protetora de ações externas e perigosas, como muitas vezes os pais enxergam. Ele acredita que ao mesmo tempo seus indivíduos tendem a testar seus limites, de testar a liberdade que estes lhe proporcionam.
Das relações de poder entre membros da família e seu reflexo na subjetividade
Para analisar a forma pela qual as relações de poder interagem no espaço familiar e a produção da subjetividade que ocorre nelas, vale tomarmos por referência o conceito de sociedade disciplinar em Foucault (1977). Quais as relações de poder que se estabelecem na família? Vale a pena refletirmos sobre o poder disciplinar em função da crise das instituições, dos valores e das mudanças das relações de poder da atualidade? É certo que sim, pois essas mudanças afetaram e afetam as famílias modernas.
Ora, é certo que existe uma sociedade disciplinar e seus reflexos infiltram-se em toda teia de relacionamentos interpessoais. Para Foucault, o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, não está localizado em determinado lugar ou exclusivamente em alguém. Ele não é um bem, mas é algo que se exerce em rede, e nessa rede todos os indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido ao poder, mas também de exercê-lo. Assim, não é porque alguém exerce o papel ‘formal’ de liderança na família que essa pessoa ‘detém’ o poder ou ‘controla’ as relações. Não se trata aqui da questão de quem tem o poder, mas de analisá-lo no ponto em que se implanta e produz seus efeitos reais. Assim, filhos, crianças ou adolescentes detém poder e muitas vezes o exercem em suas relações com seus pais. Esposas têm poder e o utilizam em suas inter-relações com esposos e filhos. Nesse contexto percebe-se que alguns ‘poderes’ são derivados e outros não, mas todos eles afetam as relações e conseqüentemente a construção da subjetividade de cada um. Até mesmo a noção da subjetividade é afetada por essas relações de poder.
Foucault fala dos contextos e mecanismos que procuram fazer crescer tanto “a docilidade quanto a utilidade de todos elementos do sistema”. (Foucault, 1977, p. 191). É o claro exercício do poder, de quem está naquele contexto, naquele momento, no controle. Segundo Foucault, as relações de poder estabelecidas no século XX nas instituições, seja na família, na escola, nas prisões ou nos quartéis, foram marcadas pela disciplina, cujo objetivo principal era a produção de corpos dóceis, eficazes economicamente e submissos politicamente.
Seria a disciplina exercida no ambiente familiar um dispositivo que afeta a construção da subjetividade? Em Foucault essa é uma certeza, onde todos os dispositivos de disciplina buscam ser uma demonstração de força e o estabelecimento de uma ‘verdade’. No cerne dos processos de disciplina, é manifestada a submissão dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se submetem. As posições das relações de poder e das do saber se sobrepõem e assumem no momento da aplicação toda a sua visibilidade. (Foucault, 1977, p. 164-165). As novas exigências geram um desequilíbrio que requer uma reacomodação das funções e papéis exercidos por cada um dos seus membros, nos subsistemas e conseqüentemente do sistema como um todo. Esta adequação de cada um dos membros é o que permite a permanência do sistema familiar, caso contrário as relações de poder manifestas na disciplina levariam o sistema a entrar em colapso. Mantido o sistema, a vigilância hierárquica sobre as pessoas possibilita a manifestação de um poder ligado com um saber, que se organiza em torno da norma, do que é ou não normal, do que é correto ou incorreto, do que se deve ou não se deve fazer, interiorizando e subjetivando em cada um tudo isso, conforme a sua aceitação do status quo que lhe é atribuído. (Foucault, 1999, p. 88).
A família, como agrupamento natural, embora ao longo da história da humanidade tenha passado por diversas adaptações, é o núcleo e centro, por excelência, do aprender, do saber e da construção do conhecimento. A célula mater da sociedade corre o risco de, não entrar na escuta, e ser relegada a um plano secundário no processo de atendimento e tratamento dos problemas.
A família, sendo o ambiente no qual se desenvolve o ser humano, tem a importância na escuta da criança, pois a família reconhecida pela criança, tanto nos seus personagens, como na sua caracterização, é o primeiro indício da relação que esta criança tem com a realidade externa. Portanto, a possibilidade de lidar com esta realidade, tem este lugar de acolhimento sempre que precisar.
A linguagem simbólica (desenho, história) possibilita a criança falar dela, da sua construção e das suas impossibilidades. Cabe ao psicopedagogo interpretar esta fala simbólica e significar os dados representados.
Compreender a forma como aprendemos o mundo, implica necessariamente em compreender como nos constituímos como indivíduos dentro do grupo familiar.
REFERENCIAS:
ANDOLFI, Maurizio, ANGELO, Cláudio, MENGHI, Paolo Menghi e MARIA, Anna. Um Novo Enfoque em Terapia da Família. (Behind The Family Mask: Therapeutic Change in Rigid Family Systems). Tradução: Maria Cristina R. Goulart. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul, 1984.
FERENCZI, Sándor (1992) O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios. (pp.39-53) Em Sándor Ferenczi, Obras completas. Psicanálise II. São Paulo: Editora Martins Fontes. (Trabalho publicado originalmente em 1913).
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(1) Delly Danitza Lozano Carvalho é Mestre em Psicologia Escolar pela UNIFIEO. Palestrante, pedagoga, psicopedagoga, pós-graduada em Gestão Educacional e em Psicopedagogia Clínica, é atualmente coordenadora das licenciaturas da Universidade Estácio UniRadial no campus Ibiúna-SP.
Um comentário:
Texto muito bom, ajudou bastante! Parabéns.
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