O Contratualismo das Vindiciae
Frank Viana Carvalho
Os huguenotes ansiavam por uma argumentação que justificasse a resistência legítima aos reis Valois (para eles tiranos em exercício) e finalmente obtiveram nas Vindiciae, pela primeira vez, uma obra que fundamentava o combate à tirania com argumentos muito bem estruturados. Porém, a maior contribuição de Mornay, tanto ao conjunto dos tratados monarcômacos, como aos estudiosos da filosofia política, foi a apresentação de uma teoria contratual que unia adequadamente os elementos políticos, jurídicos e religiosos.[1] Ao mesmo tempo em que é o ponto-chave, essa teoria é também o pano de fundo de todo o livro. Ela perpassa a obra de Mornay – desde o primeiro até o quarto capítulo[2] sendo o eixo central sobre o qual se ramificam as questões sobre o poder dos reis, a eleição do soberano, a representação dos magistrados ou a resistência à tirania. Para construí-la, Mornay tomou emprestada de Bèze a teoria do duplo contrato.
O primeiro contrato das Vindiciae é uma estipulação (stipulatio), um contrato unilateral, no qual Deus estipula, o povo e o rei prometem. Mas o rei e o povo prometem juntos, contratando assim uma obrigação solidária que ‘os obriga’ um pelo outro, e um por todos. As duas partes conjuntas são assim estreitamente ligadas no pagamento de sua dívida – ou a execução de sua promessa – estando obrigados um pelo outro e um por todos. Como, contudo, a estipulação, própria do direito romano pode ser aplicável a um contrato fundado no reino de Israel? Isso não chega a se constituir numa objeção para Mornay: o direito romano era, em efeito, o único no qual as construções jurídicas podiam dar conta desse estado de coisas. A singularidade da estipulação é haver nela a possibilidade da sanção, neste caso, uma punição divina. Sendo o modelo de Israel aplicável a todos os reis e reinos cristãos, ele seria então válido na Europa do século XVI.
Mas o contrato essencial – do ponto de vista estritamente político – é o segundo contrato, aquele que une o povo ao rei. Para precisar a posição respectiva das partes que condicionam sua participação no contrato, Mornay parte de dois postulados: o povo é superior ao rei e é o verdadeiro soberano do Estado. Ainda do direito romano teremos agora dois contratos de estipulação, cada parte estando, por sua vez, no papel de estipulante e de prometedor. Pareceria, sem dúvida, mais simples de imaginar um contrato ‘sinalagmático’[3], mas não é o que queria Mornay, porque isso colocaria as partes numa posição de igualdade que ele precisamente rejeitava. A adoção da estipulação permitia-lhe, ao contrário, pela sua flexibilidade, chegar ao seu objetivo sem maiores dificuldades.
O primeiro estipulador é o povo, cuja posição já se conhece pelo primeiro postulado – sua superioridade lhe dá esse direito. A promessa do rei é direta e simples, mas o povo, por sua vez, não tem a obrigação de se comprometer em resposta à estipulação do rei, a não ser sob uma condição: a promessa de obedecer fielmente ao rei desde que este reine justamente e de acordo com as leis. Se essa condição faltar, o compromisso cai por si mesmo – o povo permanece, de acordo com seu direito, livre de sua promessa. Para Morel (1979), de forma única e evidente no direito romano, o contrato de estipulação permitia tal interpretação, também uma total adequação entre essa construção jurídica e a teoria política das Vindiciae. (p. 295).
Tais compromissos pressupõem garantias de execução, pois quem constrangeria o rei a deixar o seu poder, a não ser o povo, por haver ele abandonado a sua promessa? Como julgar que a condição colocada pelo povo por seu próprio compromisso é ou não mantida? Ainda aqui o autor das Vindiciae recorrerá naturalmente ao direito romano. Este, com efeito, tinha previsto a partir do antigo direito, a instituição que permitia assegurar de certa maneira a execução das obrigações: era o vindex.[4] Para o primeiro contrato “Deus é o seu próprio vindex”. (Vindiciae, p. 160). Para o segundo, o papel de vindex retorna ao conjunto do povo, ou seja, aos que o representam legitimamente, os Estados Gerais ou os oficiais da coroa, em outros termos, os magistrados inferiores. Aqui Mornay faz uma clara integração entre a sua construção jurídico-filosófica e a teoria calvinista dos magistrados inferiores.
Por último, conseqüentemente, cabe constatar a ‘nulidade’ do contrato por descumprimento das condições pactuadas, em outras palavras, determinar a qualificação da tirania e tomar as devidas conseqüências contra ela – a destituição do tirano. O autor das Vindiciae não quis incorrer no erro de ter erigido uma utopia, uma teoria abstrata e sem correspondência com a realidade. Era necessário ir até o fim no combate à tirania e para isso, ao delinear o modelo teórico, ele aplica e visualiza a relação contratual através dos fatos que a apresentam como a chave, através da história, das relações entre governantes e governados. Por conhecer bem a oposição ideológica que Hotman enfrentou, seja por diferentes interpretações do poder da Assembléia sobre os reis, seja pelos erros históricos, Mornay partiu para um terreno seguro em sua argumentação contratualista: a tirania e a destituição dos tiranos eram fatos históricos que não podiam ser negados.
[1] É importante ressaltar que, na Filosofia do Direito, o contratualismo terá definições que o levam claramente a ser explicado como uma doutrina segundo a qual o Estado foi estabelecido mediante contrato entre os cidadãos, ou entre eles e o soberano. Essa perspectiva permanece na análise das Vindiciae.
[2] Consideramos como capítulos cada diferente Questão (Quaestio).
[3] Contrato ‘sinalagmático’ – No qual ambos têm o mesmo status e onde as obrigações de uma parte decorreriam automaticamente da reciprocidade entre as partes.
[4] A palavra vindex significa muito mais do que a simples tradução ‘vingador’ pode sugerir. Ela tem o sentido de alguém que garantirá o cumprimento das obrigações pactuadas, prosseguirá a ação e garantirá os interesses da parte prejudicada. (MOREL, 1979, p. 295).
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