As Guerras de Religião e a Saint-Barthélemy
Frank Viana Carvalho
O início das Guerras de Religião
Embora não possamos neste trabalho examinar todo o percurso das idéias dos reformadores na França, alguns aspectos de seu desenvolvimento mostram-se muito importantes para uma compreensão das Guerras de religião e dos escritos revolucionários do período. E é bom salientar, como o fez Broglie (2000), que as Guerras de Religião são um ‘capítulo’ maior dentro da “questão protestante” que começou bem antes de 1562 (massacre de Wassy) e terminou bastante tempo depois de 1598 (Edito de Nantes). (p. 101).[1] O protestantismo, desde o seu surgimento na Europa sofrerá resistências religiosas e governamentais, e seu início na França não foge a esta regra. Lecler (1955), examinando a propagação da Reforma Protestante na França no século XVI, escreveu:
Do ponto de vista da liberdade religiosa, a história da França no século da Reforma divide-se em dois períodos bem distintos. De 1520 a 1560 prevalece a regra tradicional: uma fé, uma lei, um rei. (...) Não estando ainda os protestantes organizados em partidos políticos, as medidas tomadas contra eles não atingem senão os indivíduos ou os pequenos grupos. (...) A partir de 1560, a minoria protestante, numerosa e politicamente organizada, começa a reivindicar para si, no reino, a liberdade de religião, resolve-se mesmo a exigi-la pela força. (LECLER, 1955, p. 5).
A partir da terceira década do século XVI, as idéias protestantes encontraram na França um terreno fértil e a começar por Estrasburgo, certamente por sua proximidade com a Alemanha de Lutero, várias cidades da França cedem espaço para as idéias e para a conversão aos princípios da fé reformada. Seguem-se outras em rápida sucessão – Paris, Meaux, Metz, Amiens, Lyon, Grenoble, e em pouco tempo todo o país já recebe a influência dos seguidores de Lutero ou Calvino. (MOURS, 1959, p. 39-41 e 49; LEONARD, 1956, p. 12-16). Mas a repressão e a intolerância também já começavam. Em 1520 o Parlamento de Paris e a Sorbonne manifestaram-se contra a “heresia” e a primeira fogueira é acesa em Paris em 1523, queimando vivo o agostiniano Jean Vallière, acusado de blasfêmia contra a Virgem Maria.
O fogo se espalha pela França, o Parlamento renova e regulamenta a repressão, a Sorbonne torna-se mais intolerante. (LECLER, 1955, p. 11; BAILLY, 1955, p. 5). Diante disso e de outras perseguições país adentro, a atitude do rei é bastante dúbia e pelo menos até 1534 ele age com certa moderação. Mas a partir do “l’affaire des placards” em 1534 ele se volta contra os reformados e a política real começa a tornar-se mais incoerente e intransigente.[2] Mas isso não diminuiu o ímpeto da propagação das novas idéias, pelo contrário, o movimento organiza-se e cresce continuamente. Seguindo uma tendência mais calvinista do que luterana, sobretudo a partir da publicação da edição francesa da Instituição Cristã de Calvino, em 1541, os protestantes franceses contarão com um “catecismo”, “a mais influente síntese da teologia protestante do século XVI” e crescerão com espantosa rapidez. (MOURS, 1959, p. 102-103; BURNS, 1970, p. 186).
Moderado a princípio, os últimos anos do reinado de François I trazem uma violenta repressão aos huguenotes, nome pelo qual os protestantes franceses tornaram-se conhecidos.[3] Em 1539 o rei faz uma aliança com Carlos V, da Alemanha, para o restabelecimento do catolicismo na Europa e neste mesmo ano promulga um Edito “para extirpar e expulsar do reino os adeptos e cúmplices de Lutero que se desviaram da santa fé católica”. Em 1540 o Edito de Fontainebleau estabelece a pena de morte para todos os heréticos, imediatamente aplicada na Provença aos seguidores da seita dos valdenses. (CASTRO, 1960, p. 37).[4] O reinado de Henri II foi ainda mais severo e utilizou o poder do Parlamento para aumentar a opressão sobre a minoria protestante.
Poucos meses após a coroação do novo soberano, criou-se uma instituição que iria ter um importante papel na perseguição aos protestantes, a Câmara Ardente do Parlamento (maio de 1547). Desde sua criação até a extinção em 1550, foram julgados mais de quinhentos casos, com aplicação de penas cruéis. (MOURS, 1959, p. 63-64; LECLER, 1955, p. 25). As prescrições do Edito de Fontainebleau são confirmadas em 1549 e, pelo Edito de Châteaubriant (1551), outra vez regulamentadas e ampliadas contra os reformados, permitindo a quem os delatasse, o confisco e posse dos bens dos ‘hereges’. (CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 185). Um fato notável desse período foi a resistência dos tribunais em aplicar a repressão contra os concidadãos do reino. Em 1555, os juristas do Parlamento de Paris tiveram a ousadia de opor-se ao rei. O porta-voz do Parlamento, Pierre Séguier, lembrou ousadamente ao rei que o antigo imperador Trajano havia se recusado a empregar tais métodos “contra os primeiros cristãos, que eram perseguidos como o são agora os luteranos”. Mas o rei não se intimidou e no Edito de Compiègne (1557) proibiu expressamente os juízes de exercer clemência para com os hereges. A política intolerante do rei permanecerá em vigor, velada, mas abertamente executada até o final de seu reino, em 1559.
A morte do rei, ferido por uma lança, foi recebida pelos reformados como um sinal da justiça divina para libertá-los da dura perseguição sofrida. Até mesmo Calvino escreveu sobre isso quando disse que “a tempestade terrível da perseguição que transtornava todo o reino talvez se amaine por este golpe da Providência”. (MADELIN, 1924, p. 81). Mas ele estava enganado e dias piores viriam para os protestantes.
As idéias reformadas que, a princípio tinham se disseminado entre os “pequenos”, encontraram um terreno fértil a partir da década de 1550 entre os nobres da França. Vale destacar que os “pequenos” não eram necessariamente os mais pobres, mas a pequena burguesia, modestos funcionários, humildes comerciantes, operários, alguns camponeses e muitos intelectuais. (MOURS, 1959, p. 92). A partir da década de 1550 a nobreza, já insatisfeita com sua situação no reino e com a perda de privilégios, encontra no zelo religioso uma esperança sincera de obter, na nova fé, lenitivo para a corrupção da Igreja e, em certo sentido, do Estado. Neste momento, a “igreja reformada se estende rapidamente em todo o reino e por todas as classes sociais”. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63). Não há como distinguir os chamados “huguenotes de Estado”, “huguenotes de Religião” e “huguenotes de aventura”. Pequenos e grandes nobres aderem ao movimento. Antoine de Bourbon, príncipe de sangue, cujo casamento com Jeanne d’Albret lhe deu o título de rei de Navarre, foi o primeiro dos grandes a se converter à nova fé em 1555. Seguem-se muitos: Louis de Condé, os Montpensier, onde se destacavam os irmãos Chastillan; Odet, cardeal-bispo de Beauvais; Gaspard de Coligny, almirante de França e François d’Andelet, coronel de infantaria. Alguns anos depois já se contam aos milhares os nobres que haviam abraçado a nova fé.
A partir de 1559, com a morte súbita do rei Henri II, o trono vai ser ocupado sucessivamente por seus três filhos, François II (1559-1560), Charles IX (1560-1574) e Henri III (1574-1589). Todos os desatinos já existentes em potencial durante os reinados de Francisco I e seu sucessor, mas, então, tolhidos pela força e prestígio da vontade real, vão encontrar livre curso sob aqueles “débeis, neuróticos, inconstantes filhos de Henri com a ítalo-florentina Catarina de Médicis”. (ERLANGER, 1960, p. 285-286).[5] Durante o curto reinado de François II[6], o governo é entregue ao duque de Guise, líder dos católicos na luta contra os huguenotes, e opositor declarado dos Bourbon (descendentes de Luís IX, o São Luís). Com o objetivo de libertar o monarca da tutela dos Guise, um complô se organiza sob a liderança de “um aventureiro, Monsieur de La Renaudie”. Mas esta conjuração feita em Amboise foi delatada, e os conjurados, cerca de duzentos, massacrados. Isso reforça o poder dos Guise, que “posam de salvadores do rei François II”, e aumentam a repressão e perseguição aos huguenotes.
Em dezembro de 1560, o rei, um adolescente de 15 anos que havia sido incapaz de resistir ao poder dos Guise, vem a falecer, dando lugar ao seu irmão, Charles IX, ainda uma criança (10 anos). Catarina de Médicis, sua mãe, assume a regência e, “hostil aos Guise”, tenta governar de forma independente. Uma Assembléia dos Estados é convocada e os representantes reunidos em Orléans deparam-se com a difícil situação financeira da coroa. Opositores “reclamam o confisco dos bens do clero para pagar as dívidas do Estado”, outros pedem “a liberdade de culto aos protestantes”. Catarina aumenta os impostos e, para restabelecer o equilíbrio, tenta impor medidas conciliatórias que permitam aos protestantes exercer sua fé sob certas condições, mas só consegue o fim das perseguições oficiais. (GAUSSEN, 1998, p. 6; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 189). Nessa época, segundo Émile Leonard (1955), praticamente “um quarto do país já havia passado para a reforma”. (p. 29). Mas as perseguições não oficiais não param e neste período (dezembro de 1560 a janeiro de 1562) mais de três mil protestantes são mortos.[7] O Colóquio de Poissy, ocorrido entre setembro e outubro de 1561 foi uma das tentativas de Catarina de Médicis para apaziguar os lados beligerantes. O chanceler liberal Michel de L’Hôspital, cuja esposa era uma huguenote, abriu o encontro convidando as duas partes ao diálogo e ao entendimento. Numa reação imediata, o arcebispo de Lyon, Cardeal Tournon, levantou-se para protestar contra a própria natureza da Assembléia, mas por fim, permitiu-se que representantes de ambas as partes discursassem: Théodore de Bèze pelos reformados e o teólogo jesuíta espanhol Diego Lainez, pelos católicos. Divergências teológicas impediram o acordo e deixaram os cerca de cinqüenta bispos presentes aborrecidos com a realeza, que os colocara em pé de igualdade com os protestantes.
Os huguenotes, percebendo as intenções diplomáticas de Catarina, conseguem uma vitória: é promulgado em janeiro de 1562 o Edito de Saint-Germain, que autoriza o culto dos reformados ao redor das cidades. Mal tiveram tempo para comemorar: em 1º de março de 1562, os huguenotes de Champagne achavam-se reunidos em Wassy na celebração de um culto, quando, surpreendidos pelo duque de Guise e sua tropa, foram massacrados. Situa-se ali, historicamente, a primeira guerra de religião, embora outros incidentes menores já houvessem ocorrido anteriormente. (BROGLIE, 2000, p. 101; MIREPOIX, 1950, p. 55). Os huguenotes, que desde 1560 já haviam se organizado politicamente em um partido, armam-se para se opor aos ataques dos Guise, mas quando se enfrentam em dezembro na cidade de Dreux, são novamente derrotados.
Este período marcará a influência de Catarina de Médicis na tentativa de, com arranjos e combinações, dar fim à luta “fratricida”. (DUBY, 1958, p. 340). Em março de 1563 ela consegue a promulgação do Edito de pacificação de Amboise, que sendo mais restritivo aos protestantes, agrada aos seus opositores. O Edito só permite o culto dos reformados em ambientes fechados. Esse interlúdio, de muita intolerância e de poucos e inexpressivos confrontos só dura quatro anos. Entre setembro e novembro de 1567, após provocações de ambos os lados, ocorrem combates em Meaux e Saint-Denis. Em março de 1568 virá o Edito de paz de Longjumeau, marcando o fim da segunda guerra de religião, mas em agosto começará a terceira e mais longa das guerras desse período conturbado. Ocorrem combates em Poitiers, Tours, Jarnac e Moncontour, onde Louis de Condé morre no campo de batalha. Gaspard de Coligny está agora sozinho na liderança militar e política dos huguenotes e faz valer seu papel: vence batalhas em Languedoc, retoma o vale do Rhône e estabelece em Charité-sur-Loire. Seus comandados retomam Tours e Poitiers. Enfrentamentos continuam a ocorrer em diversas partes do país e a paz só virá em agosto de 1570, com o Edito de Saint-Germain, que concede aos protestantes cidades onde teriam segurança e liberdade de culto (La Rochelle, Cognac, Charité-sur-Loire e Montauban). (BERTIÈRE, 1994, p. 459-463; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 192). Com as vitórias e a crescente influência de Coligny, vem outro ganho em favor dos protestantes: ele é feito almirante e torna-se conselheiro do rei, que se inclina em direção aos huguenotes.
O Massacre da Noite da Saint-Barthélemy
Na noite de 23 para 24 de agosto de 1572, os sinos da catedral de Saint Germain-l’Auxerrois fizeram o prenúncio do dia da Saint-Barthélemy, por ironia um mártir. Com o toque dos sinos, ouvem-se também os terríveis gritos dos que eram assassinados. Começava o massacre da noite da Saint-Barthélemy em que, entre três e dez mil huguenotes morreram na capital francesa. Outros milhares morreriam no restante do país.
Poucos dias antes era calmo o ambiente na capital Paris. Havia sido celebrado no dia 18 de agosto um matrimônio real que deveria encerrar duas décadas de lutas religiosas entre católicos e protestantes. Os noivos eram Henri, rei de Navarre e chefe da dinastia dos huguenotes, e Marguerite de Valois, princesa da França, filha do falecido Henri II e de Catarina de Médicis. Marguerite era irmã do então rei, Charles IX. Milhares de huguenotes de todo o país, a fina flor da nobreza francesa, foram convidados a participar das festas desse casamento. Na verdade, uma armadilha sangrenta, como se veria mais tarde. O casamento foi realizado por determinação da poderosa rainha-mãe Catarina de Médicis, conhecida por sua sagacidade e sede de poder. Mas as razões do massacre podem ser melhor explicadas.
O quadro já conturbado das disputas políticas e religiosas ganhou um complicador adicional quando Coligny convence o rei a reverter sua política externa tradicional e apoiar a resistência dos protestantes holandeses contra os espanhóis. Se fosse concretizado esse plano, a França e a Espanha poderiam entrar em guerra. Catarina concluiu então que Coligny precisava ser eliminado, a fim de cortar toda a sua influência sobre o rei. Sabendo que o seu filho não concordaria com uma execução legal, ela optou pelo assassinato do almirante. O plano era fazer parecer que Coligny fora morto pelos Guise – assim, a ira dos protestantes se voltaria contra os Guise, e duas ameaças à sua influência sobre o rei (Coligny e a família Guise) estariam afastadas.
Alguns dias depois da cerimônia de casamento, o almirante Gaspard de Coligny sofreu o atentado em rua aberta tendo apenas ferimentos leves. O problema é que o assassino errou o tiro e com isso, frustrou o plano de Catarina. Ainda assim, os huguenotes pressentiram uma conspiração. Estava em perigo a frágil trégua obtida através do casamento. Carlos IX ficou estarrecido ao saber do atentado a Coligny, seu conselheiro e confidente. O rei então falou de “caçar implacavelmente os autores do atentado”, o que deixou Catarina em grandes dificuldades. Ela rapidamente modificou seu plano e junto aos líderes católicos espalhou o boato de que os huguenotes estavam planejando uma rebelião para vingar-se do atentado. Neste momento o rei Charles IX, a princípio inseguro, pressionado pela mãe e pelo temor da rebelião dos protestantes, finalmente cedeu e ordenou a execução de Gaspard de Coligny. (MIQUEL, 1976, p. 170-171; CHEVALLIER, 1954, p. 258). Na impetuosidade da decisão solicitou um trabalho completo: nenhum huguenote que pudesse acusá-lo posteriormente do crime deveria permanecer vivo. Listas de nomes foram providenciadas para facilitar um massacre metódico. Os desprevenidos huguenotes foram mortos ainda em suas camas, a começar por Coligny, cujo corpo foi lançado pela janela do seu apartamento e depois, mutilado.
Teve então início o massacre que, segundo alguns historiadores, dizimou entre dez e cem mil huguenotes em toda a França. (ESTEBE, 1968, p. 19[8]; BURNS, 1994, p. 207[9]). Henri de Navarre, o líder dos protestantes, foi poupado na Saint-Barthélemy, especialmente por ser genro da rainha mãe e ter ficado escondido nos aposentos palacianos. O ódio misturado com o zelo religioso era tão grande que “o papa Gregório XIII fez cantar um Te Deum à Santa Maria e dirigiu uma cerimônia de ação de graças a São Luís, santo francês, em Roma, nos dias 5 e 8 de setembro de 1572, para agradecer a Deus de haver permitido” o massacre da Saint-Barthélemy. E “numa bula do dia 11 de setembro do mesmo ano ordenou um jubileu para obter a mesma graça da destruição dos huguenotes e o desaparecimento da heresia na França”. (AMBELAIN, 1981, p. 273).
As últimas Guerras de Religião
O início da quarta guerra de religião foi marcado pelo episódio da Saint-Barthélemy. O rei Charles IX, após autorizar a trágica morte de Coligny, volta-se totalmente contra os reformados e ordena o cerco à cidade de La Rochelle em fevereiro de 1573. Durante este tempo, os protestantes, “privados de seus chefes, mas inflamados por seus pastores”, retomam as armas e defendem-se como podem. Estabelecem em Millau, no sul da França, uma constituição federativa, civil e militar, onde uma espécie de república oferece segurança aos huguenotes e garantias aos católicos moderados. Em julho, após seis meses de cerco a La Rochelle, sem que o rei conseguisse a rendição da cidade, é feito um Edito de paz em Boulogne, que marca o fim da quarta guerra. Essa paz deixa os católicos descontentes e é insatisfatória para os protestantes por suas condições: livre exercício de culto em apenas três cidades de segurança (La Rochelle, Nîmes e Montauban) e no restante do país (exceto em Paris) poderiam ter reuniões religiosas em suas casas com no máximo dez pessoas. O rei Charles IX, tido como fraco por ambos os lados, tenta a paz pelo Edito de La Rochele em 25 de junho de 1573. Pouco tempo depois, no ano seguinte, o rei Charles IX vem a falecer (31 de maio de 1574).
O país entra em efervescência: panfletos e escritos huguenotes que antes da Saint-Barthélemy atacavam os Guise, agora atingem também o rei e sua mãe. O desencontro entre o pensamento religioso da realeza na população, e a idéia política da realeza entre os dirigentes do poder provocou a perda do prestígio da monarquia francesa entre todas as camadas da população. (BERTIÈRE, 1994, p. 208). A corte enfrenta tremendas dificuldades financeiras e o país está dividido: a Saint-Barthélemy nada trouxera de bom ao reino. Há descontentes de todos os lados e Henri de Navarre, finalmente, mas com dificuldades, consegue sair do país em direção à Suíça. Em 30 de maio de 1574, o rei Charles IX falece e Catarina de Médicis mais uma vez assume o reino. Henri III, informado da morte de seu irmão deixa a Polônia, onde estivera para assumir o poder pelos laços de união com sua esposa polonesa.
Neste ínterim Catarina de Médicis propõe aos protestantes que entreguem as cidades que estavam sob seu poder, deponham as armas e em troca receberiam o direito de liberdade de consciência e de poder batizar seus filhos no culto protestante. Mas ambos os lados não querem a paz e os protestantes no decurso da guerra conseguem retomar mais algumas cidades (Riez, Digne, Saintonge e Languedoc) e ainda recebem apoio e tropas da Alemanha. Henri III, irmão do falecido rei Charles IX, assume em seu lugar. Sente-se no ar que algo irá mudar, mas tudo continua como antes e em agosto de 1574 inicia-se a quinta guerra de religião com combates generalizados.
As reivindicações são muitas de todos os lados: os católicos, liderados por Henri de Guise, não querem nenhuma concessão aos protestantes; os huguenotes querem a liberação de prisioneiros, liberdade de culto e uma reunião dos Estados Gerais. Após quase quatro anos de incessante turbulência, o rei, sentindo grandes dificuldades de lidar com a situação, além de ceder, demonstra simpatia à causa huguenote e assina o Tratado d’Etigny, chamado de “Paix de Monsieur” ou Edito de Beaulieu em maio de 1576. É o fim da quinta guerra de religião, com aquele que seria, até o momento, o acordo mais favorável aos protestantes: “liberdade de culto em todo o país (exceto em Paris), várias cidades de segurança (onde teriam liberdade de culto), liberação dos prisioneiros, metade das cadeiras no parlamento e a promessa de reunir os Estados Gerais”. Além disso, os líderes huguenotes são premiados: Alençon recebe o título de duque D’Anjou, Henri de Navarre recebe o governo da Guiana e Henri de Condé, o governo da Picardia. (BERTIÈRE, 1994, p. 464-465; CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 193-196).
Inconformados, os católicos se organizam em uma Liga e, sob a liderança dos Guise, fazem de tudo para recomeçar os combates e impedir que os líderes huguenotes desfrutem de seus novos postos.[10] Apoiados “pelos prelados do rei, pelo rei da Espanha e pelo papa”, querem muito: devolver aos nobres católicos todos os seus privilégios, restituir o trono aos carolíngios (diga-se ‘aos Guise’) e restabelecer a ortodoxia católica em todo o reino. A guerra era uma questão de tempo. Os protestantes também se organizam: sob a liderança de Henri de Navarre, ‘chefe dos protestantes’, unem-se ao rei da Suécia, aos príncipes alemães e a Elisabeth, da Inglaterra. Mas nesse meio tempo, pacifistas como La Noue, herdeiro político e religioso de Coligny, fazem de tudo para que haja paz e tolerância e, por algum tempo, conseguem neutralizar os ânimos exaltados de lado a lado.
Tão reivindicados pelos huguenotes, os Estados Gerais se reúnem em dezembro de 1576 em Blois, onde os representantes católicos, em maior número, reivindicam o restabelecimento da unidade religiosa. A Assembléia termina sem alterações no Tratado d’Etigny e os conflitos recomeçam, marcados por pequenos e grandes confrontos em diversas cidades. Tinha início a sexta guerra de religião. O rei resiste, mas, pressionado pela Liga, acaba por assinar em setembro de 1577 o Tratado de Bergerac e o Edito de Poitiers, mais restritivos aos huguenotes do que os anteriores, diminuindo os lugares de segurança e impedindo o proselitismo protestante. A guerra termina e, embora o clima de tensão permaneça no ar por quase três anos, esse período é marcado pela tolerância e pela ação de La Noue e dos politiques, católicos moderados que incentivam a convivência pacífica das duas ‘religiões’ beligerantes. Em abril de 1580 ocorrerá a penúltima guerra, com novos enfrentamentos dos Guise e dos protestantes na região do Poitou. Mas apenas seis meses depois, em novembro, virá o Edito de Paz de Fleix, marcando o final da sétima guerra de religião.
A Liga, insatisfeita com o rei Henri III, por suas concessões ‘generosas’ aos protestantes, indigna-se ainda mais após o falecimento de François D’Alençon Anjou, irmão mais novo do rei.[11] Essa morte abriu caminho para que o Henri de Navarre se tornasse o próximo na linha sucessória, tanto por seu casamento com Marguerite de Valois, como por sua ascendência real, por ser o mais velho descendente direto do último filho do rei Luís IX (‘São’ Luís). Essa possibilidade assusta os partidários da Liga e entusiasma os protestantes, o que traz mais elementos de instabilidade ao reino.[12]
Mesmo após sofrer um atentado, o rei confirma Henri de Navarre como seu sucessor, declarando-o ‘delfim da França’. Inconformada, em março de 1585, a Liga protesta com violência em Péronne, ameaçando não só os huguenotes, mas também o rei. Esse incidente marca o início da oitava e última guerra de religião. O rei sente o reino ameaçado e julga que, para não perder o trono, terá de fazer concessões: é assinado o tratado de Nemours entre o rei e a Liga revogando todos os Editos que autorizavam o culto reformado e proibindo o protestantismo na França. (CHARTROU-CHARBONNEL, 1936, p. 197).
Os combates se acirram com vitórias de ambos os lados: em outubro de 1587, Henri de Navarre vence as tropas reais conduzidas pela Liga em Coutras; em novembro, Henri de Guise vence os cavalheiros huguenotes nas proximidades de Paris. Panfletos são distribuídos a mando dos Guise numa forte crítica ao rei. Em maio de 1588, a Liga tenta tomar Paris e o rei, temendo a morte, foge da cidade. Acuado pela Liga e receoso da pressão exercida por Filipe II, rei da Espanha, ele é forçado a aceitar o Edito de União, o qual assina em julho, restabelecendo a hegemonia católica no reino.
As coisas pareciam ficar cada vez piores e mais complicadas para o rei e para os huguenotes, mas um acontecimento externo traria uma mudança importante aos eventos internos. O rei da Espanha, que ameaçava invadir a França ou outros países que mostrassem uma política de tolerância aos protestantes, resolveu mostrar a força da “invencível armada” numa invasão ao reino bretão. Isso porque Maria Stuart, que havia restabelecido à força o catolicismo na Escócia, aprisionada e mantida cativa por dezenove anos, fora decapitada por ordem de Elisabeth Iª, rainha da Inglaterra. O rei espanhol Filipe II, com 130 navios, 10.000 marinheiros e 19.000 soldados tinha a vitória como certa. Mas tempestades e a forte resistência dos marinheiros e soldados ingleses reduziram a “invencível armada” a 63 navios, que voltaram humilhados para a Espanha. (GAUSSEN, 1998, p. 7).
Sentindo-se livre de pressões externas, o rei Henri III cria coragem e resolve enfrentar os Guise: em dezembro de 1588, convoca uma reunião dos Estados Gerais e nela manda prender os principais líderes da Liga, entre eles, o duque Henri de Guise e seu irmão, o cardeal de Guise, ordenando em seguida a morte de ambos. Em abril de 1589 faz um acordo com Henri de Navarre e, por suas atitudes, acaba sendo excomungado pelo papa. Nesse momento, Jean Boucher, que neste mesmo ano publicaria De justa Henrici Tertii abdicatione, “convence a Faculdade de Teologia de Paris a intervir junto ao papa para declarar Henri III deposto”, decisão esta que foi ratificada pelo Parlamento. Os ódios católicos se voltam definitivamente contra o rei.
A Liga então prepara seu plano para a deposição e efetivo afastamento de Henri III: uque publicaria creve um tratado para incentivar a deposiçanceza dos catpelo papa. morte do cardeal externo faria pedindo o prosuum ‘fanático’ católico matará o rei, o que abrirá espaço para a imediata elevação do tio católico de Henri de Navarre, o cardeal de Bourbon. O plano parece perfeito, pois a morte do último Valois (Henri III) abriria espaço para que um descendente real legítimo, no caso um Bourbon, pudesse ser rei. Desconsidera-se a indicação de Henri de Navarre como delfim feita pelo próprio rei, mas mantém-se a legalidade constitucional. O plano é executado: no primeiro dia de agosto de 1589, Jacques Clément assassina Henri III e em seguida a Liga e o Parlamento declaram o cardeal como ‘rei’.[13] Entretanto, poucos meses depois, para desespero da Liga, o cardeal, que efetivamente nunca chegou a assumir a coroa, vem a falecer abrindo novamente o caminho para Henri de Navarre. (JANET, 1971, p. 203; LEONARD, 1956, p. 132; RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 63).[14]
Mas Navarre terá de enfrentar duras batalhas políticas, religiosas e militares ao longo de quatro anos para confirmar o seu acesso ao trono francês. Somente em março de 1594 ele será aceito triunfalmente em Paris – esse episódio marcará o fim da oitava guerra de religião. Para assumir o reino, consegue “a preço de ouro, a submissão dos chefes da Liga” e se “converte” ao catolicismo. Essa ‘conversão’ ocorre justamente numa Assembléia dos Estados Gerais em 1593, na qual ele pronuncia a frase que entrou para a história: “Paris bem vale uma missa”. Embora católico, permanece irmão espiritual dos huguenotes e concede-lhes a igualdade de direitos políticos através do Edito da Tolerância de Nantes, em 1598.[15] Não era um decreto perfeito, tanto no entender dos católicos, como no dos protestantes. O Edito de Nantes fez da Igreja Católica a igreja oficial, com seus antigos direitos, propriedades e rendimentos. Aos huguenotes, quase um quinto da população, foram conferidos direitos religiosos de culto em muitas áreas, exceto num raio de trinta quilômetros ao redor de Paris; direitos civis (tribunais próprios, elegibilidade para cargos públicos e direitos políticos); e duzentos vilas e cidades fortificadas. O rei Henri IV foi informado que o papa ficou “inconsolável” com o Edito, por conceder ‘liberdade de consciência a todos – a pior coisa do mundo’. O Edito expressava a convicção, muito moderna para a maioria, de que a aceitação da diversidade religiosa era necessária para a preservação da paz.
O que fora um consolo e compensação tardia para os huguenotes, parecia trazer aos sensatos várias lições, das quais três se sobressaiam: uma advertência quanto ao mal da intolerância e o desrespeito aos direitos da pessoa humana; o perigo de associações ilegítimas entre a igreja e o estado; e a inspiração que vem tanto do heroísmo dos oprimidos por causa de sua fé, como da coragem dos politiques que, mesmo correndo riscos, colocaram-se ao lado da tolerância e da unidade nacional.
A despeito dessas lições, um tanto evidentes, a intolerância ganhará terreno novamente e cerca de um século mais tarde o decreto será revogado. Em 1685 o Edito de Nantes será revogado por Luís XIV, o que ocasionará um grande êxodo de quase trezentos mil huguenotes para outros países da Europa e para os Estados Unidos. Os poucos que permaneceram na França ficaram conhecidos com ‘A Igreja no Deserto’.
[1] Emmanuel de Broglie (2000) utiliza adequadamente a expressão “questão protestante” para o caso francês. Ao longo de toda a história do movimento protestante na França, as perseguições e dificuldades praticamente nunca deixaram de existir. Vale lembrar que o Edito de Nantes que marcou o fim das Guerras de Religião foi revogado em fins do século XVII e mais de 250.000 (duzentos e cinqüenta mil) huguenotes tiveram de deixar a França. Na verdade, as perseguições continuaram até o fim da revolução francesa, já no final do século XVIII, quando os protestantes tiveram finalmente a igualdade de direitos com relação ao restante da população francesa.
[2] L’affaire des placards – Na noite de 18 de outubro de 1534, cartazes da autoria de Antoine Marcout (pastor de Neuchatel, Suíça) que falavam contra a missa católica foram afixados em várias cidades francesas. Um desses cartazes foi afixado na porta do quarto do rei François I, em Amboise. Em resposta a essa ‘provocação’, o rei declara abertamente sua fé na Igreja católica e inicia uma grande perseguição aos protestantes na França. (RESTELLINI & YANNAKAKIS, 1990, p. 62-63).
[3] Segundo Josèph Chartrou-Charbonnel (1936), o termo ‘huguenote’ será inicialmente utilizado na França por volta de 1551 na região de Tours e sua origem parece ter vindo da Alemanha onde eidgenos (ligado por juramento), na pronúncia genebrina torna-se eiguenot, surgindo daí a expressão que designa o grupo calvinista francês. (p. 186). Dominique Gaussen (1998) afirma que o termo vem de eidgenossen, que seriam os confederados sob as ordens de Genebra. (p. 6).
[4] A seita data do século XII, fundada por Pedro Valdo em 1170. Em 1530 seus remanescentes aderem à Reforma. As perseguições iniciadas em 1540 chegam ao máximo em 1545, quando uma expedição militar enviada contra eles dizima a população de várias aldeias e vilas. Calcula-se em cerca de 5.000 o número total de vítimas.
[5] Catarina de Médicis, esposa de Henri II, era filha do florentino Lourenço de Médicis e sobrinha do papa Clemente VII.
[6] François II (embora jovem) casou-se com Maria Stuart, filha de Jacques V, rei da Escócia e de Marie de Lorraine, irmã do duque de Guise. Após a morte de seu esposo, Maria Stuart terá reativado o seu direito ao trono escocês.
[7] Émile Leonard (1955), baseando-se em D’Aubigné, historiador da época, chama este período de “primeira Saint-Barthélemy”, no qual “3.000 vítimas foram apunhaladas, esquartejadas, lançadas de precipícios, estranguladas, espancadas até a morte, queimadas, enterradas vivas, afogadas, sufocadas, e deixadas a morrer de fome”. (p. 30).
[8] Janine Estebe (1968) apresenta numa pesquisa detalhada os seguintes dados: em 1661, Pèrefixe, preceptor de Luís XIV, na sua obra Vie de Henry IV dá o número de 100.000 mortos. Por outro lado, em 1758, o abade de Caveirac, na sua Dissertation sur la journée de la Saint-Barthélemy, afirma que o número total foi de 1.000 mortos. Entre esses dois números extremos há vários outros: Ainda no século XVI, Sully indicou 60.000 mortos; Michelet e o historiador oficial de Thou apontam 30.000; em 1630, o historiador italiano Davila indicou como sendo 10.000 os mortos no massacre; Bossuet, no século VXII afirmou que foram 6.000. Em síntese, por tudo o que se lê, tendo em consideração ao fato de que famílias inteiras foram mortas, corpos foram enterrados, jogados nos rios e até queimados; e os vitoriosos no sentido material e físico foram os do partido católico apoiados pelo rei, o número correto deve ser significativamente maior do que os historiadores católicos tentam demonstrar e certamente menor do que os cálculos feitos com influência protestante. (p. 18- 19).
[9] De acordo com as várias fontes de diferentes cidades onde houve registros do massacre, é praticamente seguro afirmar que devem ter morrido pelo menos cerca de 30.000 protestantes. J. H. Burns (1994) não chega a um número decisivo. (p. 207).
[10] A Liga católica será alvo de diversos estudos específicos que tentam desvendar suas reais motivações. Vale mencionar as recentes obras de Élie Barnavi, Le Parti de Dieu. Etude Social et Politique de La Ligue Parisienne. Louvain, Nauwlaerts, 1990; de Robert Descimon, Qui etaient les Seize? Mythes et relités de la Ligue Parisienne, Paris, Klincksieck, 1983 e de Jean-Marie Constant, La Ligue, Paris, Fayard, 1996.
[11] Bastava a Henri III ter um filho para impedir a ascenção de Henri de Navarre, mas ele não tinha nenhum herdeiro do sexo masculino.
[12] Neste ano, o papa Sixto cedeu às obsessões dos Guise (diga-se Liga) e Editou uma bula excomungando Henri de Bourbon e o príncipe de Condé. Hotman foi encarregado de responder a esta intromissão e escreveu Brutum Fulmen que aparece sem nome de autor em 1585.
[13] Os historiadores reconhecem o fato, mas não incluem o cardeal de Bourbon como um dos reis da história da França.
[14] Após a morte do cardeal de Bourbon, rei por alguns meses, a Liga “encoraja a idéia de uma monarquia verdadeiramente eletiva, para finalmente descobrir que suas tentativas de escolher um dirigente católico estavam sobrecarregadas pelas rivalidades de seus próprios chefes aristocráticos”. (JANET, 1971, p. 200).
[15] Hugues Daussy (2002) admira-se do pouco questionamento feito pelos historiadores de como os protestantes, em tão menor número, puderam resistir por tanto tempo à maioria católica e ao tão grande poder da Liga: “Não seria interessante perguntar por qual milagre os reformados puderam resistir a este desencadeamento da violência católica, tão freqüentemente destacado pelos historiadores – como eles puderam conseguir fazer face à determinação e ao poderio militar de uma Liga sustentada pelos espanhóis? Enfim, por qual força eles puderam lutar e se defender com um sucesso tal que finalmente conseguiram arrancar a concessão de um Edito legalizando uma existência que havia sido negada por quarenta anos (...)?” Ele mesmo responde ao dizer que os historiadores exaltam excessivamente a figura de Henri IV, distorcendo a verdadeira história. Para ele “crer que o futuro rei Henri IV tenha podido sozinho assegurar a defesa dos interesses reformados de 1576 a 1589 seria deformar a realidade”. (p. 19). Ele completa: “se a França esteve entregue por quarenta anos às guerras civis ou guerras de religião, é porque existia, em face de uma grande maioria de católicos, uma importante minoria de protestantes”. (p.17).
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