quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A NOÇÃO DE PODER SOBERANO: CRÍTICA DE HART A AUSTIN


A NOÇÃO DE PODER SOBERANO:
CRÍTICA DE HART A AUSTIN
 Frank Viana Carvalho, D. Filosofia

Resumo
Hart critica o uso da noção de poder soberano na definição austiniana de lei. Pretendemos explicar o sentido e as consequências teóricas dessa crítica no pensamento de Hart. Também iremos analisar as seguintes questões: Poderia Hart ter tratado de outra forma a noção de poder soberano? Nesse caso, sua crítica seria sustentável nos mesmos termos?

Abstract
Hart criticized the use of the concept of sovereign power in austinian definition of law. We intend to explain the meaning and the theoretical consequences of the critical thinking of Hart. We will also examine the following questions: Could Hart have otherwise treated the notion of sovereign power? In this case, your criticism would be sustainable in the same terms?


Obediência Habitual

Na definição austiniana de lei, o poder soberano manifesta-se através da “doutrina que afirma que em cada sociedade política, tanto numa democracia como numa monarquia absoluta, encontra-se latente, em última análise, essa relação simples em os súditos prestam obediência habitual e um soberano que a ninguém presta obediência natural.”[i]  Este modelo vertical, composto de soberano e súditos é, segundo a teoria, “uma parte tão essencial numa sociedade, que tenha direito, como a coluna vertebral o é no homem.”[ii]
O soberano estabelece as leis de funcionamento social e político, e também dá prosseguimento aquelas já estabelecidas. Na visão austiniana, para aqueles aos quais se dirigem as leis e também aos quais elas são aplicadas, funciona o hábito de obediência. O seu poder se manifesta na contínua obediência prestada pelos súditos (através do hábito de obediência) e pela sua posição, acima do direito, limitando e criando limitações para os outros, mas ele mesmo ilimitado ou sem limitações jurídicas ou legais. Assim, o seu poder é soberano e desta forma ele se manifesta.
A análise de Hart dessas colocações principia pelo questionamento do hábito de obediência a partir de dois aspectos significativos: a continuidade da autoridade, vislumbrada numa perspectiva de diferentes legisladores sucedendo-se uns aos outros e, a persistência das leis, mesmo após o desaparecimento dos seus autores e dos que lhes prestavam obediência habitual.
A afirmação de que é habito a obediência de uma população é apenas uma afirmação de que “os hábitos da maior parte das pessoas são convergentes.”[iii] A obediência inicial poderia também ser ancorada em ameaças, abstenções e castigos. Por medo ou por outros motivos forma-se um círculo de obediência. Mesmo que algumas das leis sejam obedecidas por hábito deve-se considerar que há outros elementos importantes envolvidos na obediência. Enquanto a obediência for prestada regularmente, ninguém na comunidade necessita ter ou expressar quaisquer opiniões sobre a sua obediência ao soberano, ou se ela é correta, adequada ou legítima.  Na ausência de um soberano, teremos de esperar, para ver se a obediência prestada ao primeiro se manifestará para com o segundo. Isto demonstra que apenas o hábito da obediência não explica a força do poder soberano.
E mais, para um novo soberano, “não existe nada que o torne soberano desde o início. Apenas depois de sabermos que as  suas ordens foram obedecidas durante um certo tempo, estaremos aptos a dizer que se firmou um hábito de obediência.”[iv] Assim, antes que este estágio seja atingido, não será criado nenhum direito e há aí um intervalo. Ora, a continuidade do poder não é assegurada automaticamente, mas sim, apenas a possibilidade desta continuidade. Um novo soberano tem o direito de passar a criar direito e mesmo não tendo tido tempo de exercer (por não haver vivido o suficiente), pode, contudo, ter tido o direito de criar direito e suas ordens serem direito.   Porém esta continuidade vê-se às voltas com expressões tais como “regra de sucessão”, “título”, “direito à sucessão” e “direito de criar direito”, mas é obvio que estas expressões não explicam por si a questão do hábito de obediência.
Há três aspectos importantes nas diferenças entre um hábito e uma regra, para que seja delineada a questão do hábito da obediência: Uma convergência geral ou mesmo a identidade de comportamento não bastam para criar a existência de uma regra que exija tal comportamento – a pressão no sentido de conformidade e os desvios ou ameaças deles variam muito quanto a sua demonstração. Desde que haja uma boa razão para não fazê-lo, o desvio do padrão é geralmente aceito; e mais, sempre existirá uma minoria que se recusa a aceitar a regra como para padrão para si e para os outros. E finalmente o aspecto interno das regras, pois o comportamento geral é visto apenas na sua exterioridade – o que é necessário é que haja uma atitude crítica reflexiva em relação a certos tipos de comportamento enquanto padrões comuns.
A aceitação de uma regra por uma sociedade em determinado momento não garante a sua existência continuada. De diferentes maneiras pode ocorrer uma revolução, ou por outros fatores a sociedade deixar de aceitar a regra. Isto na vigência de um mandato de um soberano ou de uma legislatura. Vale ressaltar também que os hábitos de obediência de cada um, numa sucessão de legisladores, não bastam para explicar os direitos de um sucessor  à sucessão e a consequente continuidade do poder legislativo. Primeiro porque os hábitos não são normativos, isto é, “não podem conferir direitos ou autoridade a quem quer que seja.”[v]  Segundo porque os hábitos de obediência de um indivíduo não podem referir-se a uma categoria ou sequência. Assim, o fato de se prestar obediência habitual “a um legislador não fundamenta nem a afirmação de que o seu sucessor tem direito a criar direito, nem a afirmação factual de que será provavelmente obedecido.”[vi]
Seria absurdo pensar que o cidadão comum tem uma compreensão clara das regras que especificam as qualificações de um corpo continuadamente em mudança. Para o cidadão comum, o que se manifesta é a sua larga aceitação dos resultados dos atos oficiais dos líderes do povo.
Hart ainda insiste em mais um argumento contra esta visão austiniana afirmando que a “fraqueza da doutrina consiste em obscurecer ou distorcer o outro aspecto relativamente ativo que é discernido primeiramente, ainda que não exclusivamente, nos atos de criação, identificação e aplicação do direito pelos funcionários ou peritos do sistema.”[vii]  Para Hart a questão é muito mais complexa do que uma simples visão da força da doutrina poderia fazer supor.  Esta doutrina da obediência habitual a um soberano que a ninguém presta obediência é simplista e reduz o problema a uma visão que não traz explicações para as situações do direito exemplificadas por Hart.

Persistência da Lei

Outro aspecto de destaque é a persistência da lei, a despeito do soberano e dos seus súditos já não mais existirem.  Como podem leis prevalecer, se aqueles que as promulgaram e aqueles que as obedeceram por hábito de obediência não mais estão entre nós?  A resposta do problema do “porque direito ainda?” é, em princípio a mesma do nosso problema anterior de “porque direito já?” (quando um novo soberano assume) e envolve a substituição de uma noção demasiado simples de hábitos de obediência a uma pessoa soberana pela noção de regras fundamentais correntemente aceitas, que especificam uma categoria ou sequência de pessoas, cuja palavra deve constituir um padrão de comportamento para a sociedade.
Assim, quando um legislador morre, o seu trabalho legislativo sobrevive-lhe, porque se assenta no fundamento de uma regra geral que sucessivas gerações continuaram a respeitar, em relação a cada legislador. Esta aceitação das regras do passado é “certamente mais complexa e sofisticada do que a ideia de hábitos de obediência a um legislador atual.”[viii] O reconhecimento não toma a forma de qualquer ordem explícita (como no caso dos atuais), mas a de uma expressão tácita da vontade do soberano. Não seria o caso de uma regra consuetudinária que por sua vez, não tem o estatuto de direito. Porém, leis do passado e leis aprovadas hoje podem ter o mesmo estatuto de direito. “Em quaisquer dos casos, tais leis não são direito, apenas depois de serem aplicadas pelos tribunais; e, igualmente em ambos os casos, o seu estatuto como direito deve-se ao fato de terem sido emitidas por pessoas cujos atos legislativos revestem-se hoje de autoridade independentemente do fato de tais pessoas estarem vivas ou mortas.”[ix]
O único ponto positivo que Hart vislumbra nas ideias por ele combatidas, ou melhor, criticadas, é a de que certos atos legislativos, do passado ou do presente, estão revestidos de autoridade. E isto é essencial para a sua equivalência para com as leis do presente.


O sentido e as consequências da crítica do poder soberano

Poder soberano

Já com relação ao poder soberano e a sua “não limitação” jurídica Hart desenvolve uma linha de pensamento interessante e contundente para com as ideias austinianas. Na doutrina da soberania proposta por Austin, o hábito de obediência do súdito tem, como complemento, a ausência de um tal hábito por parte do soberano. Para o soberano, não há, nem pode haver quaisquer limitações jurídicas ao seu poder de criar direito. Esta doutrina afirma também que em qualquer modelo político e em qualquer sociedade em que há direito, há um soberano com estes atributos. Hart inicia sua crítica afirmando ser esta uma pretensão não comprovada. Seria uma distorção da teoria querer dar a ela uma pretensão maior do quer ela mesma contem.  Segundo Hart, esta teoria não apenas diz que algumas sociedades onde há direito encontraremos um soberano sem limitações jurídicas, mas diz que em toda a parte  a existência de direito implica a existência de um tal soberano. Por outro lado, a teoria não sustenta que não haja limites ao poder soberano, mas que não há limites jurídicos ao poder soberano. Aí vemos que há diversos fatores que podem influenciar o comportamento do soberano e suas decisões. Até mesmo o temor de uma revolta popular, ou as “suas convicções mortais”[x] Mas estes não são limites jurídicos. Não está o soberano restrito ou sujeito a nenhum dever jurídico que o impeça de legislar e de fazê-lo como tal.
Segundo Hart, se encontrarmos este soberano que recebe obediência habitual e não a presta a ninguém podemos fazer duas coisas: podemos identificar nas suas ordens gerais o direito de uma sociedade e distinguí-lo de muitas outras regras, princípios ou a padrões, morais ou simplesmente consuetudinários pelos quais as vidas de seus membros são também regidas e segundo, podemos determinar se estamos diante de um modelo, no campo do direito, um sistema jurídico independente ou se trata de uma parte subordinada de algum sistema mais amplo.
Vejamos, para Hart, a existência de um soberano, sem limitações jurídicas, numa sociedade imaginária, “não é uma condição necessária ou um pressuposto da existência do direito.”[xi]  A concepção de um soberano juridicamente ilimitado desvirtua a natureza do direito em muitos estados modernos onde ninguém põe em causa que exista direito. Poderes legislativos supremos dentro de um sistema estão longe de ser ilimitados. Uma constituição escrita pode restringir a competência do órgão legislativo, não apenas pela especificação da forma e do modo de legislar (que poderíamos aceitar não serem limitações), mas pela exclusão absoluta de certas matérias do âmbito da competência legislativa, impondo assim limitações substantivas.
Hart trabalha com alguns exemplos para demonstrar que este poder soberano é limitado. Ele dá o exemplo de que numa determinada sociedade onde existe um soberano há uma regra aceita e válida de que nenhuma lei será válida se forem expulsos da terra os nativos dela. Num tal caso, os poderes estariam limitados juridicamente. É certo, entretanto, que mesmo dentro destas limitações jurídicas, este modelo é um poder independente para estabelecer e editar leis. Embora tais restrições sejam jurídicas e não apenas morais ou consuetudinárias, a sua presença não pode ser expressa em termos de presença ou ausência de um hábito de obediência. Também é valido relembrar que embora um determinado soberano detenha poder soberano, limita-se a preencher as condições para criar direito válido. Por outro lado, o fato de um rei de outro país fizer com que este soberano lhe obedeça, não retirará a validade das suas leis e do direito inerente a elas.
Então primeiramente, as limitações jurídicas não estão no fato de um legislador soberano ter que obedecer a qualquer outro legislador supremo, mas no fato de que há incapacidades contidas nas regras que lhe conferem poderes para governar. Em segundo lugar, para se estabelecer uma lei, não é necessário que o soberano seja ilimitado, apenas ele deve ser habilitado para tal. Em terceiro lugar, para que um sistema jurídico seja independente, não é necessário que o seu legislador maior seja ilimitado ou não conhece restrições jurídicas. Em quarto lugar, há diferenças entre uma autoridade ilimitada juridicamente e outra que embora limitada, é suprema no sistema. E finalmente em quinto lugar, enquanto a presença ou ausência de regras que limitam a competência do legislador é crucial, os hábitos de obediência são apenas uma prova indireta. A única relevância nisto estaria no fato de que a sua competência para legislar estaria subordinada a de outros.
Limitações substantivas de poder podem encontrar-se nas legislações de vários países (por exemplo, Estados Unidos ou Austrália) e isto não impede que nestes países funcionem órgãos máximos ou instancias máximas de poder legislativo.
Um fato que frequentemente é esquecido, é relembrado por Hart: de que o próprio Austin, ao elaborar a teoria, não identificou o soberano como a assembléia legislativa, mas com o monarca (no caso da Inglaterra). A despeito disso, o próprio Austin também afirmou que nas democracias são os “representantes eleitos”[xii] que constituem ou fazem parte do corpo do poder soberano. Neste caso a concepção inicial do soberano sofreu uma “certa sofisticação, se não mesmo uma radical transformação.”[xiii] Se aplicarmos a ideia do soberano a uma democracia, teremos então uma situação na qual a “maioria” da sociedade obedece a si própria. Esta é uma imagem confusa, pois é uma sociedade que obedece a ordens dadas pela maioria ou por todos – isto se nos remetermos as definições simples da teoria original.
O que vemos é que as regras são constitutivas do soberano e não apenas coisas que devemos mencionar numa descrição dos hábitos de obediência ao soberano.  Numa visão moderna, a melhor hipótese que surge é que: as regras estabelecem condições  segundo as quais as pessoas eleitas são habitualmente obedecidas – entretanto isto nos faria retornar à ideia de que o legislativo e não o eleitorado, é soberano, e também a todas as dificuldades resultantes deste fato.

Considerações Finais
Poderia Hart ter tratado de outra forma a questão do poder soberano? Seria a sua crítica neste caso sustentável nos mesmos termos?

Para Hart a teoria austiniana está errada não somente nos aspectos simples, como também nas ideias de ordens, hábitos e obediência, que não são adequadas para a análise do direito.  Ao expandir a aplicação das ideias chegamos ao eleitorado como soberano. Este caso contempla, na melhor das hipóteses, um órgão legislativo limitado. Vale ressaltar que tanto o leitorado esta limitado juridicamente como o legislativo nos modelos democráticos.
Mas a intenção de Hart não era destruir as ideias colocadas por Austin, mas ampliar os conceitos que ele considerou como simplistas e insuficientes para explicar a questão do poder soberano e do direito.
A meu ver, Hart poderia ter tratado de outra maneira a questão do poder soberano. Ele poderia se restringir a usar como exemplo as monarquias, pois nelas existe a figura de um representante soberano em um modelo diferente das repúblicas democráticas. Acredito que seus argumentos seriam igualmente sustentáveis, pois os soberanos deste exemplo em questão não são juridicamente ilimitados. Assim, os mesmos termos seriam aplicados com sucesso, restringindo-se a ideias mais próximas dos primeiros enunciados,  mas ainda assim com colocações que mostrariam  da mesma forma a inadequação conceitual geral da teoria austiniana.
  
Bibliografia:


[i] HART, Herbert L. A. (The Concept of Law)O Conceito de Direito, Fundação Calouste, 2ª Ed., Portugal,  1994, p. 59
[ii] Idem.
[iii] Idem, p. 61.
[iv] Idem, p. 62.
[v] Idem, p. 68.
[vi] Idem, p. 69.
[vii] Idem, p. 70.
[viii] Idem, p. 72.
[ix] Idem, p. 73.
[x] Idem, p. 76.
[xi] Idem, p. 77.
[xii] Idem, p. 83.
[xiii] Idem, p. 84.

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...