A
NOÇÃO DE PODER SOBERANO:
CRÍTICA
DE HART A AUSTIN
Resumo
Hart critica o uso da noção de poder soberano na definição austiniana de lei. Pretendemos explicar o sentido e as consequências teóricas dessa crítica no pensamento de Hart. Também iremos analisar as seguintes questões: Poderia Hart ter tratado de outra forma a noção de poder soberano? Nesse caso, sua crítica seria sustentável nos mesmos termos?
Hart critica o uso da noção de poder soberano na definição austiniana de lei. Pretendemos explicar o sentido e as consequências teóricas dessa crítica no pensamento de Hart. Também iremos analisar as seguintes questões: Poderia Hart ter tratado de outra forma a noção de poder soberano? Nesse caso, sua crítica seria sustentável nos mesmos termos?
Abstract
Hart criticized the use of the concept of sovereign power in austinian definition of law. We intend to explain the meaning and the theoretical consequences of the critical thinking of Hart. We will also examine the following questions: Could Hart have otherwise treated the notion of sovereign power? In this case, your criticism would be sustainable in the same terms?
Obediência
Habitual
Na
definição austiniana de lei, o poder soberano manifesta-se através da “doutrina
que afirma que em cada sociedade política, tanto numa democracia como numa
monarquia absoluta, encontra-se latente, em última análise, essa relação
simples em os súditos prestam obediência habitual e um soberano que a ninguém
presta obediência natural.”[i] Este modelo vertical, composto de soberano e
súditos é, segundo a teoria, “uma parte tão essencial numa sociedade, que tenha
direito, como a coluna vertebral o é no homem.”[ii]
O
soberano estabelece as leis de funcionamento social e político, e também dá
prosseguimento aquelas já estabelecidas. Na visão austiniana, para aqueles aos
quais se dirigem as leis e também aos quais elas são aplicadas, funciona o
hábito de obediência. O seu poder se manifesta na contínua obediência prestada
pelos súditos (através do hábito de obediência) e pela sua posição, acima do
direito, limitando e criando limitações para os outros, mas ele mesmo ilimitado
ou sem limitações jurídicas ou legais. Assim, o seu poder é soberano e desta
forma ele se manifesta.
A
análise de Hart dessas colocações principia pelo questionamento do hábito de
obediência a partir de dois aspectos significativos: a continuidade da
autoridade, vislumbrada numa perspectiva de diferentes legisladores
sucedendo-se uns aos outros e, a persistência das leis, mesmo após o
desaparecimento dos seus autores e dos que lhes prestavam obediência habitual.
A
afirmação de que é habito a obediência de uma população é apenas uma afirmação
de que “os hábitos da maior parte das pessoas são convergentes.”[iii]
A obediência inicial poderia também ser ancorada em ameaças, abstenções e
castigos. Por medo ou por outros motivos forma-se um círculo de obediência.
Mesmo que algumas das leis sejam obedecidas por hábito deve-se considerar que
há outros elementos importantes envolvidos na obediência. Enquanto a obediência
for prestada regularmente, ninguém na comunidade necessita ter ou expressar
quaisquer opiniões sobre a sua obediência ao soberano, ou se ela é correta,
adequada ou legítima. Na ausência de um
soberano, teremos de esperar, para ver se a obediência prestada ao primeiro se
manifestará para com o segundo. Isto demonstra que apenas o hábito da
obediência não explica a força do poder soberano.
E
mais, para um novo soberano, “não existe nada que o torne soberano desde o
início. Apenas depois de sabermos que as
suas ordens foram obedecidas durante um certo tempo, estaremos aptos a
dizer que se firmou um hábito de obediência.”[iv]
Assim, antes que este estágio seja atingido, não será criado nenhum direito e
há aí um intervalo. Ora, a continuidade do poder não é assegurada
automaticamente, mas sim, apenas a possibilidade desta continuidade. Um novo
soberano tem o direito de passar a criar direito e mesmo não tendo tido tempo
de exercer (por não haver vivido o suficiente), pode, contudo, ter tido o
direito de criar direito e suas ordens serem direito. Porém esta continuidade vê-se às voltas com
expressões tais como “regra de sucessão”, “título”, “direito à sucessão” e
“direito de criar direito”, mas é obvio que estas expressões não explicam por
si a questão do hábito de obediência.
Há
três aspectos importantes nas diferenças entre um hábito e uma regra, para que
seja delineada a questão do hábito da obediência: Uma convergência geral ou
mesmo a identidade de comportamento não bastam para criar a existência de uma
regra que exija tal comportamento – a pressão no sentido de conformidade e os
desvios ou ameaças deles variam muito quanto a sua demonstração. Desde que haja
uma boa razão para não fazê-lo, o desvio do padrão é geralmente aceito; e mais,
sempre existirá uma minoria que se recusa a aceitar a regra como para padrão
para si e para os outros. E finalmente o aspecto interno das regras, pois o
comportamento geral é visto apenas na sua exterioridade – o que é necessário é
que haja uma atitude crítica reflexiva em relação a certos tipos de
comportamento enquanto padrões comuns.
A
aceitação de uma regra por uma sociedade em determinado momento não garante a
sua existência continuada. De diferentes maneiras pode ocorrer uma revolução,
ou por outros fatores a sociedade deixar de aceitar a regra. Isto na vigência
de um mandato de um soberano ou de uma legislatura. Vale ressaltar também que
os hábitos de obediência de cada um, numa sucessão de legisladores, não bastam
para explicar os direitos de um sucessor
à sucessão e a consequente continuidade do poder legislativo. Primeiro
porque os hábitos não são normativos, isto é, “não podem conferir direitos ou
autoridade a quem quer que seja.”[v] Segundo porque os hábitos de obediência de um
indivíduo não podem referir-se a uma categoria ou sequência. Assim, o fato de
se prestar obediência habitual “a um legislador não fundamenta nem a afirmação
de que o seu sucessor tem direito a criar direito, nem a afirmação factual de
que será provavelmente obedecido.”[vi]
Seria
absurdo pensar que o cidadão comum tem uma compreensão clara das regras que
especificam as qualificações de um corpo continuadamente em mudança. Para o
cidadão comum, o que se manifesta é a sua larga aceitação dos resultados dos
atos oficiais dos líderes do povo.
Hart
ainda insiste em mais um argumento contra esta visão austiniana afirmando que a
“fraqueza da doutrina consiste em obscurecer ou distorcer o outro aspecto
relativamente ativo que é discernido primeiramente, ainda que não
exclusivamente, nos atos de criação, identificação e aplicação do direito pelos
funcionários ou peritos do sistema.”[vii] Para Hart a questão é muito mais complexa do
que uma simples visão da força da doutrina poderia fazer supor. Esta doutrina da obediência habitual a um
soberano que a ninguém presta obediência é simplista e reduz o problema a uma
visão que não traz explicações para as situações do direito exemplificadas por
Hart.
Persistência
da Lei
Outro
aspecto de destaque é a persistência da lei, a despeito do soberano e dos seus
súditos já não mais existirem. Como
podem leis prevalecer, se aqueles que as promulgaram e aqueles que as
obedeceram por hábito de obediência não mais estão entre nós? A resposta do problema do “porque direito
ainda?” é, em princípio a mesma do nosso problema anterior de “porque direito
já?” (quando um novo soberano assume) e envolve a substituição de uma noção
demasiado simples de hábitos de obediência a uma pessoa soberana pela noção de
regras fundamentais correntemente aceitas, que especificam uma categoria ou sequência
de pessoas, cuja palavra deve constituir um padrão de comportamento para a
sociedade.
Assim,
quando um legislador morre, o seu trabalho legislativo sobrevive-lhe, porque se
assenta no fundamento de uma regra geral que sucessivas gerações continuaram a
respeitar, em relação a cada legislador. Esta aceitação das regras do passado é
“certamente mais complexa e sofisticada do que a ideia de hábitos de obediência
a um legislador atual.”[viii]
O reconhecimento não toma a forma de qualquer ordem explícita (como no caso dos
atuais), mas a de uma expressão tácita da vontade do soberano. Não seria o caso
de uma regra consuetudinária que por sua vez, não tem o estatuto de direito.
Porém, leis do passado e leis aprovadas hoje podem ter o mesmo estatuto de
direito. “Em quaisquer dos casos, tais leis não são direito, apenas depois de
serem aplicadas pelos tribunais; e, igualmente em ambos os casos, o seu
estatuto como direito deve-se ao fato de terem sido emitidas por pessoas cujos
atos legislativos revestem-se hoje de autoridade independentemente do fato de
tais pessoas estarem vivas ou mortas.”[ix]
O
único ponto positivo que Hart vislumbra nas ideias por ele combatidas, ou
melhor, criticadas, é a de que certos atos legislativos, do passado ou do
presente, estão revestidos de autoridade. E isto é essencial para a sua
equivalência para com as leis do presente.
O
sentido e as consequências da crítica do poder soberano
Poder
soberano
Já
com relação ao poder soberano e a sua “não limitação” jurídica Hart desenvolve
uma linha de pensamento interessante e contundente para com as ideias
austinianas. Na doutrina da soberania proposta por Austin, o hábito de
obediência do súdito tem, como complemento, a ausência de um tal hábito por
parte do soberano. Para o soberano, não há, nem pode haver quaisquer limitações
jurídicas ao seu poder de criar direito. Esta doutrina afirma também que em
qualquer modelo político e em qualquer sociedade em que há direito, há um
soberano com estes atributos. Hart inicia sua crítica afirmando ser esta uma
pretensão não comprovada. Seria uma distorção da teoria querer dar a ela uma
pretensão maior do quer ela mesma contem.
Segundo Hart, esta teoria não apenas diz que algumas sociedades onde há
direito encontraremos um soberano sem limitações jurídicas, mas diz que em toda
a parte a existência de direito implica
a existência de um tal soberano. Por outro lado, a teoria não sustenta que não
haja limites ao poder soberano, mas que não há limites jurídicos ao poder
soberano. Aí vemos que há diversos fatores que podem influenciar o
comportamento do soberano e suas decisões. Até mesmo o temor de uma revolta
popular, ou as “suas convicções mortais”[x]
Mas estes não são limites jurídicos. Não está o soberano restrito ou sujeito a
nenhum dever jurídico que o impeça de legislar e de fazê-lo como tal.
Segundo
Hart, se encontrarmos este soberano que recebe obediência habitual e não a
presta a ninguém podemos fazer duas coisas: podemos identificar nas suas ordens
gerais o direito de uma sociedade e distinguí-lo de muitas outras regras,
princípios ou a padrões, morais ou simplesmente consuetudinários pelos quais as
vidas de seus membros são também regidas e segundo, podemos determinar se
estamos diante de um modelo, no campo do direito, um sistema jurídico
independente ou se trata de uma parte subordinada de algum sistema mais amplo.
Vejamos,
para Hart, a existência de um soberano, sem limitações jurídicas, numa
sociedade imaginária, “não é uma condição necessária ou um pressuposto da
existência do direito.”[xi] A concepção de um soberano juridicamente
ilimitado desvirtua a natureza do direito em muitos estados modernos onde
ninguém põe em causa que exista direito. Poderes legislativos supremos dentro
de um sistema estão longe de ser ilimitados. Uma constituição escrita pode
restringir a competência do órgão legislativo, não apenas pela especificação da
forma e do modo de legislar (que poderíamos aceitar não serem limitações), mas
pela exclusão absoluta de certas matérias do âmbito da competência legislativa,
impondo assim limitações substantivas.
Hart
trabalha com alguns exemplos para demonstrar que este poder soberano é
limitado. Ele dá o exemplo de que numa determinada sociedade onde existe um
soberano há uma regra aceita e válida de que nenhuma lei será válida se forem
expulsos da terra os nativos dela. Num tal caso, os poderes estariam limitados
juridicamente. É certo, entretanto, que mesmo dentro destas limitações
jurídicas, este modelo é um poder independente para estabelecer e editar leis.
Embora tais restrições sejam jurídicas e não apenas morais ou consuetudinárias,
a sua presença não pode ser expressa em termos de presença ou ausência de um
hábito de obediência. Também é valido relembrar que embora um determinado
soberano detenha poder soberano, limita-se a preencher as condições para criar
direito válido. Por outro lado, o fato de um rei de outro país fizer com que
este soberano lhe obedeça, não retirará a validade das suas leis e do direito
inerente a elas.
Então
primeiramente, as limitações jurídicas não estão no fato de um legislador
soberano ter que obedecer a qualquer outro legislador supremo, mas no fato de
que há incapacidades contidas nas regras que lhe conferem poderes para governar.
Em segundo lugar, para se estabelecer uma lei, não é necessário que o soberano
seja ilimitado, apenas ele deve ser habilitado para tal. Em terceiro lugar, para
que um sistema jurídico seja independente, não é necessário que o seu
legislador maior seja ilimitado ou não conhece restrições jurídicas. Em quarto
lugar, há diferenças entre uma autoridade ilimitada juridicamente e outra que
embora limitada, é suprema no sistema. E finalmente em quinto lugar, enquanto a
presença ou ausência de regras que limitam a competência do legislador é
crucial, os hábitos de obediência são apenas uma prova indireta. A única
relevância nisto estaria no fato de que a sua competência para legislar estaria
subordinada a de outros.
Limitações
substantivas de poder podem encontrar-se nas legislações de vários países (por
exemplo, Estados Unidos ou Austrália) e isto não impede que nestes países
funcionem órgãos máximos ou instancias máximas de poder legislativo.
Um
fato que frequentemente é esquecido, é relembrado por Hart: de que o próprio
Austin, ao elaborar a teoria, não identificou o soberano como a assembléia
legislativa, mas com o monarca (no caso da Inglaterra). A despeito disso, o
próprio Austin também afirmou que nas democracias são os “representantes
eleitos”[xii]
que constituem ou fazem parte do corpo do poder soberano. Neste caso a
concepção inicial do soberano sofreu uma “certa sofisticação, se não mesmo uma
radical transformação.”[xiii]
Se aplicarmos a ideia do soberano a uma democracia, teremos então uma situação
na qual a “maioria” da sociedade obedece a si própria. Esta é uma imagem
confusa, pois é uma sociedade que obedece a ordens dadas pela maioria ou por
todos – isto se nos remetermos as definições simples da teoria original.
O
que vemos é que as regras são constitutivas do soberano e não apenas coisas que
devemos mencionar numa descrição dos hábitos de obediência ao soberano. Numa visão moderna, a melhor hipótese que
surge é que: as regras estabelecem condições
segundo as quais as pessoas eleitas são habitualmente obedecidas –
entretanto isto nos faria retornar à ideia de que o legislativo e não o
eleitorado, é soberano, e também a todas as dificuldades resultantes deste
fato.
Considerações
Finais
Poderia
Hart ter tratado de outra forma a questão do poder soberano? Seria a sua
crítica neste caso sustentável nos mesmos termos?
Para
Hart a teoria austiniana está errada não somente nos aspectos simples, como
também nas ideias de ordens, hábitos e obediência, que não são adequadas para a
análise do direito. Ao expandir a
aplicação das ideias chegamos ao eleitorado como soberano. Este caso contempla,
na melhor das hipóteses, um órgão legislativo limitado. Vale ressaltar que
tanto o leitorado esta limitado juridicamente como o legislativo nos modelos
democráticos.
Mas
a intenção de Hart não era destruir as ideias colocadas por Austin, mas ampliar
os conceitos que ele considerou como simplistas e insuficientes para explicar a
questão do poder soberano e do direito.
A
meu ver, Hart poderia ter tratado de outra maneira a questão do poder soberano.
Ele poderia se restringir a usar como exemplo as monarquias, pois nelas existe
a figura de um representante soberano em um modelo diferente das repúblicas
democráticas. Acredito que seus argumentos seriam igualmente sustentáveis, pois
os soberanos deste exemplo em questão não são juridicamente ilimitados. Assim,
os mesmos termos seriam aplicados com sucesso, restringindo-se a ideias mais
próximas dos primeiros enunciados, mas
ainda assim com colocações que mostrariam
da mesma forma a inadequação conceitual geral da teoria austiniana.
Bibliografia:
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