Cotas para os Excluídos
Frank Viana Carvalho
Acho válida a ação
afirmativa do movimento negro em prol das cotas nas Universidades públicas.
Faço ênfase na ação do movimento e não na questão das cotas, pois sobre este assunto algumas questões
necessitam ser bem delineadas para que não se crie o contrário do que se
almeja.
Primeiramente os números. Inicialmente a cota pedida
pelo movimento foi de 40% de reserva de vagas para estudantes negros (alguns
representantes do movimento falaram em até 50%), depois mudada para 20%.
Segundo o último censo (2000)[1],
em dados publicados somente agora em 2002, 45,3% da população brasileira é
formada por negros e pardos. (A palavra “pardo” é para mim uma completa
“indefinição”). Segundo dados oficiais, repetidos pela pesquisadora Fernanda
Almeida, 5,2% da população brasileira é formada por negros e 40,3% por pardos.
Na Folha de São Paulo, um articulista afirma que 11% da população brasileira é
formada por negros. O Diário Popular[2] afirma
que 9,5% da população é formada por negros. Finalmente, como última fonte de
dados, volto-me para os dados do IBGE[3]: os brancos representam 53,8% da população, ao
passo que os mestiços e mulatos (os “pardos”) são 39,1%, os negros 6,2%, os
asiáticos 0,5% e os ameríndios 0,4%.
A dificuldade das pesquisas em encontrar
um número (de 6,2% a 11% - no caso dos afro-americanos) só vêm demonstrar a
dificuldade de estabelecer uma determinação étnica precisa para a população
brasileira.
Só para a nossa informação, os negros representavam em
1817, 52% da população brasileira. Com a intensa onda imigratória de europeus
no final do século XIX e após um período de intensa miscigenação com os índios
(cafuzos) e com os brancos (mulatos), os negros representavam em 1950, 11% da
população do país[4].
Nos
censos posteriores os itens referentes às raças foram reformulados em função da
falta de uma definição precisa para uma parcela da população (relembrou: os
“pardos”). Com a intensa miscigenação, os “pardos”, nas suas “colorações
brasileiras” foram quebrando barreiras, sofrendo e superando preconceitos e
dificultando estatísticas. O próprio termo raça é impreciso, associado à
divisão da humanidade em diferentes grupos populacionais de acordo com o
critério da descendência biológica comum (real ou suposta). Esta noção de raça
como forma de classificação rígida ou sistema genético foi quase inteiramente
abandonada e atualmente se reconhece que as raças humanas são subdivisões relativas.
Não vejo uma razão efetiva para confiarmos plenamente
nos números citados, mas eles nos levam a ver esta questão do pedido das cotas
de diferentes formas: 20% somente para os negros ou para os negros e os
“pardos”? A cota vai garantir o acesso dos excluídos ou dos negros mais
qualificados? Um sistema de cotas para negros incentivará outros grupos
minoritários (não necessariamente no critério raça ou etnia) a também reivindicarem suas cotas (mulheres,
índios, homossexuais, aidéticos)? O
governo poderá atendê-los? Esta cota na
Universidade garantirá o acesso aos mercados de trabalho?
Em nosso país, os grandes
discriminados são de fato os pobres, como bem colocou Clóvis Rossi[5].
Mas não estamos com isso querendo atenuar a discriminação histórica que existe
contra os negros (ainda mais quando são pobres). Isto para não falarmos em
outros grupos discriminados em diferentes graus e em diferentes contextos – vou
citar dois, para não ser cansativo: você já viu mulheres no alto escalão das
empresas – e no Congresso Nacional (quantas?)?; você já viu “personagens” protestantes em novelas de TV (e eles são
15,4% da população)?
Sou a favor de políticas
públicas que de fato eliminem os problemas buscando atingi-los na sua base e
não paliativos que acentuem uma discriminação já existente. A ação afirmativa
das cotas pode ser a evidenciação de uma discriminação – e isto, se por um lado
cria uma porta de acesso, mantém ou até reforça o estigma do preconceito.
Talvez seria interessante um sistema de cotas para os pobres: já imaginou isto
com base no censo[6] – 95% das
vagas nas Universidades Públicas para os pobres e para a classe média. Ei,
espere um pouco, é melhor não colocar a classe média neste negócio, senão pode
ocorrer alguma controvérsia. Melhor assim: 70% das vagas na Universidade
Pública para os pobres.
As pesquisas mostram que a participação dos pobres nas
universidades brasileiras tem diminuído ao longo dos últimos anos e dados
tabulados com base nas Pnads (Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio) do
IBGE, pelo sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente da instituição, mostram
que ocorreu uma pequena tendência de elitização do ensino superior. Em 1992, os
estudantes que pertenciam ao estrato dos 10% mais ricos da população
representavam 45,6% do número de alunos matriculados no ensino superior. Em 1999,
essa porcentagem aumentou para 48%. Já a presença dos 50% mais pobres nesse
nível de ensino diminuiu durante esse período. Em 1992, eles representavam
8,5%. Em 1999, eram 6,9%. Quando se avalia a presença dos 20% mais ricos e dos
20% mais pobres, a elitização fica ainda mais evidente. Os 20% mais ricos
aumentaram sua participação de 67,1% para 70,7%; os 20% mais pobres caíram de
1,3% para 0,9%.[7] Aqui
consigo ver claramente um sistema de cotas. Interessante... cotas para os
excluídos.
Colocando claramente
minha posição: não creio que uma ação afirmativa resolveria o problema da
discriminação. A verdadeira solução passa pela melhoria da educação e das
demais condições sociais do povo em geral. É preciso melhorar a escola pública
de ensino fundamental e médio, pois os que a freqüentam não têm condições de
concorrer em situação de igualdade com os alunos das escolas particulares. E na
mesma linha de ação aumentarmos o número de vagas nas universidades públicas. E
mais, se devemos ter cotas, que elas sejam para os que já são excluídos de
vários privilégios sociais: os pobres.
Entretanto sei que outros pesquisadores
se dividem ao analisar esta questão. É o caso de Rawls[8], que defende políticas de
discriminação positiva, e por outro lado de Hayek[9],
que não vê nisso uma solução, mas mesmo um novo problema. Há também os que pensam como o senador Antero
Paes de Barros, cujo projeto de lei prevê a
reserva de 50% das vagas das universidades públicas para alunos da rede
pública de ensino. Também temos os que preferem que se continue o atual
sistema, que funciona na base da “meritocracia da desigualdade”. Os que passam
nos atuais vestibulares das universidades públicas tem méritos para tal, mas
sabemos que há uma grande desigualdade entre os concorrentes.
Com relação às cotas para
os negros, acho que seria muito bom se, de fato, eles conseguissem em nível
nacional, embora eu imagine que não será fácil. Isto deve levar o governo a
repensar suas ações sociais e suas políticas, pois para com estes existe uma
dívida histórica. No estado do Rio de Janeiro foi alcançada a primeira vitória
do movimento: foi votada uma lei que garante 40% das vagas para negros e pardos
nas universidades. Uma pesquisa feita entre os usuários da Folha Online e que
teve a participação de 1588 pessoas, aponta que 75% (1195) são contra o sistema
de cotas e que apenas 25% (393) se mostraram favoráveis.
Bem, escrevo estas coisas
dentro de uma Instituição de Ensino Superior, onde em 1999, 33% dos professores eram negros. Em 2000 este
percentual subiu um pouco e foi para 37,5% e em 2001, mas, com o aumento do
número global de professores, este percentual caiu para 16,6%. Mas se falarmos
das outras etnias, ou dos gêneros, da formação, da origem ou da grande mistura
que temos aqui, o assunto fica no mínimo, interessante. Éramos 12 professores:
6 homens e 6 mulheres; dois especialistas, três mestrandos, cinco mestres e
dois doutorandos. Sete USP, dois PUC e dois de outras Instituições. Sete
católicos, três protestantes, uma espírita e uma sem religião. Seis casados,
três solteiros, dois separados e um separado e casado de novo. As docentes:
duas são negras e quatro são brancas (uma loira, duas meio loiras e uma
morena). Os docentes: um é mulatinho,
dois são brancos, dois são mais ou menos brancos, e eu, bem ... no meu
caso é complicado. Tenho um bisavô português e uma bisavó índia. Mas na outra
linha genealógica uma bisavó negra e um bisavô francês. Faltou falar dos outros
bisavós: portugueses e mulatos. Não satisfeito, casei com uma estrangeira.
Bem, eu acho que eu sou ... brasileiro.
Frank Viana Carvalho. Artigo intitulado ‘Cotas
para os Excluídos’, publicado na Revista “Pátio, Revista Pedagógica”.
Ano VI, nº 22, julho/agosto de 2002. Páginas 47 e 48, Porto Alegre. Pedagogo,
Teólogo, Especialista em Psicologia da Adolescência - Andrews University campus Newbold –
Inglaterra, Mestre em Educação – UNASP,
Mestre em Ética e Filosofia Política – USP e Doutor em Filosofia – USP/ François Rabelais
- França.
Referências:
[1] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. Página oficial do IBGE na internet – www.ibge.gov.br -
09/05/02.
[2] Setembro de 2001.
[3] JT, citando dados oficiais do IBGE, 09/05/02, 16A.
[4] Delta Larousse, v. 2, p. 493.
[5] Folha de São Paulo, 28/08/01.
[6] Segundo dados só agora revelados do Censo
2000, 51,9% dos trabalhadores brasileiros ganha até R$ 400,00 por mês. Apenas
2,6% ganha acima de 20 salários mínimos – R$ 4.000,00 ou mais.
[7] Folha de São Paulo, 27/05/2002.
[8] “Sustenta o filósofo que a as desigualdades
econômicas e sociais devem ser compensadas pelo Estado, beneficiando os que se
encontram em posições menos vantajosas.” Rawls, John. A Theory of Justice,
Harvard University Press, 1971, in Luiza Helena Malta Moll, Adversus on
line, nov. 99 - nº 54, Discriminações
não autorizadas pela Constituição.
[9] Hayek põe dúvida na ação do Estado
interferindo nas forças de mercado de modo a ajustá-las para algum ideal de
igualdade, afirmando que se perderiam os efeitos benéficos em termos de
eficiência e nos confrontaríamos com amplas desigualdades, em especial aquelas
que secundariam os esforços para redução das desigualdades sócio-econômicas.
Isto porque os indivíduos diferem em seus atributos como a capacidade, os quais
o governo não pode alterar para assegurar-lhes a mesma posição material que,
por sua vez, exige do governo que os trate diferentemente. F. A. Hayek. Os Fundamentos da
Liberdade, Editora UnB, Pensamento Político vol 56, 1986.
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