O diálogo se passa em 20 de outubro de 1517 na fria cidade de Wittemberg. Dois amigos assentados nos últimos bancos do Refeitório da Universidade local conversam enquanto se mantem atentos para que ninguém escute o que estão falando. É um diálogo que fará 500 anos em 2017.
Questionando Dogmas
Por Frank Viana Carvalho
(Hans [fala sussurrando e baixinho]) – Lutero, você continua com aquelas ideias de questionar as doutrinas e apontar os erros da Igreja?
(Lutero) – Hans, nós já conversamos sobre isso. Sei dos riscos que corro, mas são tantas as coisas nas quais tenho razão... Aliás, sobre várias coisas que escrevi... tem mais gente que pensa como eu, só não tem coragem de ...
(Hans [interrompendo Lutero]) – Martinho, você sabe que não é tão simples assim. A Igreja é muito dura com quem entra em conflito com ela. Foi você mesmo que me contou o que aconteceu com Jan Huss e Jerônimo de Praga, que morreram queimados na fogueira...
(Lutero) – Sim, é verdade, mas isso ocorreu há mais de cem anos e além do mais, alguém tem que fazer alguma coisa. Acredito que minhas aulas já têm incomodado muita gente, mas pela liderança que exerço aqui, preciso ir além e fazer a Igreja refletir e mudar...
[silêncio dos dois]
(Hans) – Lutero, sei que você tem razão e sei que algo deve ser feito. Eu também me preocupo com a forma como a Igreja tem o controle das pessoas e do seu comportamento.
(Lutero) – Estou atento a isso, Hans. Veja, até pessoas instruídas são manipuladas pelos ensinamentos errôneos. Dão seu dinheiro, suas posses e mesmo sua vida em favor de falsas doutrinas, pessoas inescrupulosas e ensinos equivocados... Mas com relação às pessoas, não vou generalizar, pois sei que há monges e padres que acreditam em tudo isso sinceramente...
(Hans) – É, mas a sinceridade deles parece cega. Eles não refletem sobre tudo isso aí. Acho que é porque a Igreja sabe trabalhar com aspectos que afetam a mente de qualquer ser humano, seja rico ou pobre, instruído ou iletrado. [Hans faz uma pausa e lança uma pergunta] – Você acredita mesmo que a Igreja vai mudar? Vai aceitar a sua repreensão e implementar as reformas necessárias?
(Lutero) – Acredito. Afinal de contas, é apenas um retorna à mensagem da Bíblia. Ora, para ganhar o perdão de Deus, ninguém precisa castigar-se ou fazer boas obras, mas somente ter fé em Deus. Não estou inventando nenhuma doutrina nova...
(Hans) – Eu sei, mas para os líderes da Igreja em Roma, você estará indo contra o que a Igreja ensina agora.
(Lutero) – Eles também querem o bem da Igreja e por isso creio que vai funcionar.
(Hans) – Quando vejo você falar assim, tão confiante, penso que tudo pode dar certo. Mas quando me lembro que a Igreja afirma categoricamente que ela tem a “Verdade”, a única verdade e que só ela tem o “Conhecimento”, e que nada pode ser interpretado fora de Roma...
[silêncio]
(Lutero [após uma longa pausa]) – E você Hans, que gosta de observar as pessoas, o comportamento dos fieis, dos líderes...
(Hans) – Sabe Martinho, acredito que a Igreja utilizou por tanto tempo o temor e o medo que as pessoas sentem, para com isso controlá-las, que muitos dos bispos e padres atuais não sabem dirigir uma paróquia sem usar desse mesmo recurso. O que você pensa disso?
(Lutero) – Consigo até me lembrar de alguns aspectos e frases dessa manipulação pelo medo... Se você não obedecer às regras da Igreja, não será abençoado... Se você não se penitenciar, irá para o inferno... Se você não for fiel nas ofertas e na devolução programada do seu dinheiro você não será perdoado nem recompensado por Deus... e ultimamente essa que mais me incomoda...
(Hans) – Qual?
(Lutero [fazendo uma inflexão da voz, imitando o bispo da cidade]) ... Se você não contribuir para a construção das Catedrais comprando indulgências, você não herdará o reino dos céus, além de não receber as bênçãos de Deus na Terra...
(Hans) – Eu acreditava nisso também, mas quando li as Escrituras... Oh Deus, obrigado... [Hans eleva os olhos aos Céus]
(Lutero) – Mas a Igreja usa o medo de outras formas também.
(Hans) É verdade, e o maior medo que ela impõe aos fieis é o de não pertencer a Igreja... [agora Hans faz a inflexão da voz] Se você abandonar a Igreja... [Hans se corrige], eles dizem que é abandonar a fé, mas continuando, [novamente Hans faz a inflexão da voz] Se você abandonar a fé, você será uma ‘ovelha desgarrada’, ‘fraco na fé’, ‘coitado’, ‘mundano’...
(Lutero) – ... Herege, endemoniado, apóstata.
(Hans) – Sabe Lutero, lembrei-me de uma expressão que ouvi sobre Remídio, quando ele pensava em fazer algo semelhante ao que você está tentando fazer agora. Ele acabou saindo da Igreja – e ele era uma pessoa da liderança. Eles disseram que ele tinha caído da graça e saído da Igreja...
(Lutero) – Ele, assim como outros, queria apenas o melhor para a Igreja... como não conseguiu, preferiu sair.
(Hans) – Você se lembra, eles disseram dele: ‘as estrelas mais brilhantes serão as primeiras a cair’...
(Lutero) – O pior Hans, é que pessoas sinceras dentro da Igreja pensam assim, rotulando a todos os que saem, ainda mais os líderes. Você se lembra de como muitos o evitaram e se afastaram dele como se ele tivesse pegado uma doença quando a Igreja o excomungou?
(Hans) – Não deve ter sido fácil para ele... mas, ainda bem que alguns amigos o acolheram e mantiveram o contato e a amizade com ele... remaram contra a multidão, mesmo sofrendo críticas do bispo...
(Lutero) – É verdade...
(Hans) – Lutero, não é meu intuito desanimá-lo, mas preste atenção no que vou dizer. Acredito que se você apresentar alguma ideia ou conceito que entre em confronto com o pensamento da Igreja sobre qualquer assunto, mesmo que você esteja certo, e eu acredito que está, alguma explicação será dada provando o ponto de vista da Igreja. E tudo continuará como sempre foi...
(Lutero) – Acredito que dessa vez será diferente, pois as teses e os questionamentos que apresento são sérios.
(Hans) – Amigo, não sei não... sendo que o assunto é ‘sério’, dirão que você está sendo usado pelo inimigo. Você já pensou nisso?
(Lutero) – Hans, você sabe que não sou ingênuo. Mas creio que me darão ouvidos e isso implicará em mudanças positivas para todos. Entretanto, sei que não será fácil...
(Hans) – Amigo, você já pensou alguma vez em fazer como o Erasmo de Roterdam? Afinal, vocês são amigos, não é... vocês se correspondem com frequência...
(Lutero) – Sim, nós nos correspondemos, mas no caso dele é diferente. Erasmo escolheu não seguir a vida sacerdotal e tem uma vida completamente independente da Igreja, podendo falar e escrever praticamente tudo o que quer. Mas convenhamos, como ele não é de ‘dentro’, a Igreja não liga para as críticas que ele faz. Eles não o veem como um teólogo ou uma ameaça e por isso as críticas dele nunca terão o efeito de abalar e sacudir o clero para mudanças positivas.
(Hans) – Entendo. Temos visto que Erasmo é um zeloso cristão e ao mesmo tempo, independente. Ele largou tudo Lutero, mas sei que no seu caso é diferente, pois sua vida é a Igreja, seus sermões, suas aulas, sua teologia...
[Hans faz uma pausa e continua]. Lutero, e se a Igreja te excomungar? E se o expulsarem? Se te proibirem de comungar com os irmãos?...
(Lutero [arregalando os olhos]) – Hans, não creio que chegarão a esse ponto, as coisas mudaram, os tempos mudaram... os príncipes apoiam o nosso ponto de vista...
(Hans) – Ao menos pense na hipótese... o que você fará?
(Lutero) – Realmente não pensei nisso... mas acho que para tudo Deus dá uma solução. Se isso acontecer... realmente eu ainda não sei... Não consigo me ver fora da Igreja... Mas talvez você tenha razão... vou pensar nisso a partir de agora...
(Hans) – Vou um pouco além... E se agirem de forma extrema e decretarem a sua morte?
(Lutero) – Você está vendo as coisas com os olhos do passado – a Igreja tem seus problemas mas não é tão obscurantista...
(Hans [sussurrando]) – E como está a lista? Com quantos itens já está?
(Lutero [sussurrando]) – Oitenta e um... mas eu acho que vai passar de noventa...
(Hans) – Amigo, que Deus te ilumine e te dê coragem no grande desafio que você tem pela frente. Estarei orando por você.
(Lutero) – Obrigado Hans, também orarei por ti.
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