segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Uma Aventura de Carro pelos Caminhos da América do Sul - Capítulo VI


CAPÍTULO VI

ARGENTINA DE NOVO

"Se és capaz de arriscar numa única parada tudo quanto ganhaste em toda a tua vida...". Rudyard Kipling

            Novamente em Gallegos, passamos na casa da sra. Nikolaus, que nos deu um gostoso jantar às 23:00 hs. Conversamos um pouco e saímos dali às duas da manhã para avançarmos para Comodoro Rivadávia. De acordo com o nosso cronograma estávamos um dia atrasados e precisávamos recuperar seguindo direto.
            Para nossa alegria, muita da neve que encontramos  na ida para o Sul, agora havia descongelado e não necessitamos fazer muito uso das correntes. Neste trecho o Binho atropelou um coelhinho "atravessador" de estradas.
            Na nossa rápida passagem por Comodoro, compramos líquido anticongelante e seguimos rumo à Cordilheira dos Andes. Sabíamos que íamos encontrar muito frio.
Um trechinho rural de Bariloche, perto da Cordilheira.
            Uma inquietação reinava dentro de mim: e se o frio da Cordilheira dos Andes for mais intenso do que o que podemos suportar? De início, tudo bem, pois já estávamos enfrentando frio há uns dez dias. Mas eu sabia que o avanço no gelo e na neve seria lento e a nossa experiência nestas situações era apenas de iniciantes.
            Vamos lá, pensei comigo: para todo problema existe uma solução. Poucos quilômetros depois de de Comodoro já começamos a subir. Montanhas e mais montanhas numa sucessão interminável. Assentado no banco traseiro, eu podia contemplar à vontade aquela magnífica paisagem. Lá pelo final da tarde surgiu a pré-cordilheira: altas montanhas, algumas cobertas de neve, outras pelos pinheiros e vegetação de altitude. Começaram a aparecer a nossa frente e a nossa esquerda, pois já tomávamos rumo noroeste.
            A noite chegou e com ela a chuva. Tínhamos receio de que nevasse, embora soubéssemos que não teríamos escolha nos Andes. Evitávamos paradas longas, pois a  simples abertura  das portas esfriava o interior do veículo. A chuva parou, mas em breve retornou trazendo mais frio. Nosso pequeno aquecedor a gás já estava no seu segundo e último bujãozinho descartável. A previsão inicial, segundo o vendedor, é de que ele durasse umas dezoito horas. Mas o primeiro não durou nem seis e isto também nos preocupava. Chegamos em Esquel por volta das nove da noite e nos alegramos, pois dali até San Carlos de Bariloche são apenas uns duzentos quilômetros. Entretanto, a partir daquele ponto encontramos alguns trechos de estradas de terra que iam ficando cada vez mais frequentes e longos, até que esta era a nossa única opção até Bariloche. Inúmeras poças d'agua na esburacada estrada faziam-nos parecer que estávamos em um rali na selva.
  O cansaço já não era muito suportável e para quem estava dirigindo tornava-se cada vez mais importante que o companheiro do lado estivesse acordado. Chuva de novo, e o frio aumentava. De repente surge a temida neve, cobrindo toda a estrada. Neste primeiro trecho foi possível avançar sem correntes. O carro dançava na estrada congelada e a densa escuridão daquelas montanhas só era cortada pelas luzes do nosso farol. Poucas vezes cruzamos com outros carros naquela região. Embora parecesse que seguíamos rápido, a noite se mostrava longa e o nosso alvo mais distante. A neve aumentou e tivemos que parar e colocar as correntes. Nevava muito e o frio fora do carro era insuportável. Quem desceria para colocar as correntes? Antes que começássemos a analisar a situação, o Binho prontamente se dirigiu para fora do carro e foi pegar no porta-malas o instrumento indispensável para aquela situação.
            Mortos de sono, já quase não falávamos nada. Correntes no chão, o Binho manda manobrar o carro: - Um pouco mais pra frente!... Agora para trás!... Tá bom! de novo! Aiii! Um grito de dor. E quase teve a sua mão atropelada. Ficou muito bravo e não vale a pena relembrar os impropérios que o coitado disse com a mão dolorida. Finalmente as correntes ocuparam o devido lugar e saímos dali. O Binho voltou com as mãos quase congeladas. Dava dó. Pegou o aquecedor e aquecia alternadamente as mãos. Depois foi o Márcio, que também batia queixo naquela hora. Usávamos todas as blusas que tínhamos direito e os cobertores também.
            Aí surge um trecho de asfalto. Vibramos, já devíamos estar chegando. Mas ainda seguimos quarenta quilômetros antes de chegarmos a esperada Bariloche. Com receio de que surgisse neve novamente, embora os primeiros quilômetros de asfalto não dessem indícios de sua presença, não tiramos as correntes. Parece incrível, mas arrastamo-nos a quarenta quilômetros por hora até chegarmos àquela bonita cidade turística.
            Chegamos em San Carlos de Bariloche. A cidade dos esquiadores e amantes do inverno na América do Sul. Era meia noite quando atravessamos o centro da cidade.
            Como estávamos bem perto da fronteira decidimos completar o tanque e aproveitar o preço da gasolina. Desde que havíamos saído de Viedma, uns cinco dias antes, pagávamos apenas metade do preço pelo combustível. É que a lei argentina prevê custo reduzido para o sul do país, a fim de implementar o turismo e o desenvolvimento da região. Assim, abastecíamos apenas com a gasolina especial, de maior octanagem. Na hora de pagar em Bariloche levamos um susto: por ser uma cidade puramente turística e desenvolvida, aquela lei já não prevalece ali. Pagamos caro por um pequeno descuido.
            Deixamos a bela cidade, já dirigindo há três dias sem parar. Seus belos prédios em estilo europeu e suas ruas calçadas com paralelepípedos foram ficando para trás. Ainda havia muita gente na rua quando saímos dali à uma da madrugada. Seguimos, com correntes, embora as ruas de Bariloche não estivessem cobertas com neve.
            Naquele ponto  eu dirigia, e percebi que os dois rapazes dormiam. O cansaço era insuportável e conduzi por apenas uns trinta e cinco quilômetros. Parei do lado da estrada às duas da manhã e uni-me a eles num ronco gostoso. Às cinco e meia despertei e dirigimo-nos para a fronteira com o Chile. Tiramos as correntes e vimos o 12º dia da nossa viagem clarear, avançando novamente por estrada de terra.
            No posto argentino da fronteira tivemos a informação de que a estrada que cruza a cordilheira estava coberta de neve, mas que ocasionalmente tratores trabalhavam removendo-a. Ali a temperatura estava na casa dos quinze graus negativos e tivemos que trocar o primeiro pneu furado da viagem. Enquanto trocávamos o pneu, percebemos, o Binho e eu, que nossas calças estavam se desfazendo em alguns pontos. Depois de gastarmos algum tempo tentando relembrar o que poderia ter motivado aqueles furos, descobrimos a causa.
 - Foi quando estávamos em Rio Gallegos e pegamos aquela bateria emprestada! Disse o Binho.
 - Tem razão! Ainda bem que temos outras roupas por baixo! Completei! Dando risadas.
            Seguimos para a temida travessia às oito e meia da manhã. Apenas uns cinco quilômetros e já tivemos que colocar novamente as correntes. A neve caia como em filmes de natal e o Binho resolveu se divertir um pouco. Pegou o seu skate, que já estava sem as rodinhas e deslisava pelas encostas cobertas de neve em uma montanha próxima. E enquanto eu filmava, o Márcio resolveu deixar marcado na neve o nome da sua namorada.
            Tudo ali era lindo, mas ao mesmo tempo, desolado. A paisagem coberta de neve, tudo branco, fazia daquele lugar um sonho para cada um de nós. Entramos no carro e mais uns oito quilômetros, o sonho começou a virar pesadelo. A camada de neve era muito grossa, cerca de 30 a 40 centímetros; começamos a ter dificuldades para avançar. O gás do aquecedor acabou. O Márcio, que conduzia naquela hora, girava o volante de um lado a outro e acelerava e desacelerava a fim de facilitar o avanço do carro. Só que a neve ficava cada vez mais espessa e o desgaste da embreagem já se fazia notar pelo forte cheiro do disco esquentando. Até que houve um momento que não deu mais. O carro literalmente atolou na neve e ficou preso. Mesmo com as correntes nas rodas de tração, elas deslizavam, pois o fundo do carro já havia encostado na neve. Sem o aquecedor, a temperatura do interior do carro caia rapidamente e passamos minutos angustiosos. Desnecessário émencionar que as muitas histórias de pessoas que morreram em situações idênticas vieram à cabeça dos três no mesmo instante. Olhávamos uns para os outros, preocupados e calados. Imaginei que os dois estivessem me olhando e pensando: e agora homem? Como vamos sair desta?
            Sugeri que descêssemos do carro e empurrássemos. O Binho achou que não ia dar certo, pois o nosso carro era muito pesado e a neve escorregadia. Falei então de minhas experiências de empurrar carros atolados na lama.
 - Na roça dá certo! E a lama é escorregadia também! Falei.
O Binho aceitou a argumentação e descemos. Empurramos o carrão meio de lado para forçar as laterais dos pneus contra o cascalho. Pedimos a Deus que nos ajudasse.
            - Um, dois e ...já! O carro saiu sem maiores dificuldades. Entusiasmado, o Márcio avançou cerca de duzentos e cinqüenta metros e o Binho e eu saímos correndo atrás. Esquecemos de que estávamos na altitude e chegamos no carro com "meio metro" de língua prá fora. Entramos no carro e seguimos agradecidos a Deus pela ajuda num momento crucial.  Um pouco mais à frente encontramos com alguns carros e um ônibus que vinha em comboio. Aí comecei a entender a pergunta do policial argentino na fronteira: - Vocês vão sozinhos? Com receio de que algo de desagradável ocorra, eles atravessam aquele trecho em comboio para que possam se ajudar mutuamente. Mas a visão dos carros nos animou. Se eles chegaram  até aqui, é certo que poderemos chegar lá, pensamos. Mais um pouco à frente e vimos, sucessivamente três tratores limpando a estrada. Naquele trecho havia com certeza mais de meio metro de neve e o trabalho das máquinas era imprescindível. começamos a encontrar descidas e sabíamos que a nossa aventura no gelo e na neve estava prestes a pedir um descanso. Após quarenta quilômetros de travessia de fronteira, chegamos ao posto fronteiriço do Chile. Já sem neve e sem correntes.

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