RELAÇÕES
INTERPESSOAIS NO MUNDO ESVAZIADO PELO INSTANTÂNEO E DESCARTÁVEL
Dr. Frank Viana Carvalho
Resumo
Tornamo-nos a sociedade do instantâneo e do descartável. Vivemos
na era dos bens descartáveis e dos serviços instantâneos. Quase tudo que nos
chega às mãos é descartável e ao mesmo tempo queremos as coisas na velocidade
do pensamento. E qual é o problema? A resposta é simples – nós transpomos
nossas relações com as coisas para a nossa relação com as pessoas.
Abstract
We have become a
society of instant and disposable. We live in an age of disposable goods and
services snapshots. Almost everything we get in our hands we throw them at the
same time we want things at the speed of thought. And what is the problem? The
answer is simple - we transpose our relations with things for our relationship
with people.
Viver continuamente num contexto de relações interpessoais parece
ser uma condição básica
da natureza humana. Seja
na família, na comunidade do bairro, do trabalho, do clube, da igreja e
sobretudo da escola, interagimos continuamente com o outro. No caso da escola,
relações entre alunos são reproduções do cotidiano em um contexto
particularizado – quase uma ilha. Quando os professores lançam o desafio de que
os alunos trabalhem em grupos, este gesto pedagógico mostra-nos uma clara
intenção de potencializar estas relações, seja por motivá-los a crescer no
aprendizado do trabalho em equipe, seja na busca conjunta da realização de uma
tarefa.
Entretanto, esta não é uma prática rotineira, especialmente por
demandar do professor o preparo e o planejamento para que não ocorra o
contrário do que se pretendia. Em outras palavras, pretende-se que na escola, o
aluno desenvolva habilidades que o ajudarão nas relações interpessoais no mundo
fora da escola. Desta forma, trabalhos em grupos que ocorrem de forma
organizada e produtiva, onde cada um cumpre a sua parte não são tão constantes
na vida escolar. São muitas as dificuldades neste processo e um número razoável
de docentes mantém os alunos num ensino individualizado e com poucas interações
entre si.
No cotidiano fora da escola, há uma tendência natural ao
agrupamento e à busca de realizações conjuntas para uma grande variedade de
tarefas. Fora da escola, como diz Piaget, “existe a vida, e na vida, existem os
amigos e as relações sociais entre crianças.” Para ele é “nesta atmosfera de
cooperação que se desenvolve a autonomia.” E logo em seguida o mesmo autor
pergunta: “Por que a escola não tiraria então proveito destas possibilidades
que revela o estudo psicológico do desenvolvimento moral e social das crianças.
Aqui ainda, isto depende antes de tudo da atitude do professor.”(1)
Relações interpessoais são construções de identidades
O que ocorre, neste caso, e estamos falando de relações
interpessoais, é a constante busca da escola para adequar-se aos mecanismos
sociais da atualidade e porque não dizer, da modernidade. Mas esta busca
esbarra numa profunda frustração para a escola ao não conseguir o sucesso
almejado, ou consegui-lo apenas de forma parcial. Soma-se a isto o próprio ser humano em busca da sua
identidade. Para onde vais? Essa era uma pergunta que denotava na antiga Roma um sentido de rumo para a vida, no sentido de construção desse rumo. É a construção de si próprio. Esse quo vadis mostra uma busca inconsciente que é uma constante na vida do
adulto, mas será também nas crianças em idade escolar? Com certeza.
Não estaríamos tentando dar uma explicação psicológica a uma
simples questão do cotidiano das instituições (neste caso, da escola)? Talvez.
Aqui poderíamos afirmar como Fischmann e Wheelis (2) que, ao mesmo tempo em que há uma profunda insatisfação
das pessoas na sua busca, há também um excesso de psicologização na tentativa de resolver e explicar os
problemas.
Esse processo, no entanto, não é algo que ocorre de forma
metódica, sistemática e, com isso diversas rupturas nessas tentativas de
explicação da natureza humana e seu processo de construção. A sensação de
descontinuidades leva a uma busca individual, com explicações para tudo – logo
há também uma exacerbação da crença no próprio indivíduo. Neste contexto,
onde muitas pessoas (quase todos) supõem saber analisar o
comportamento, caminha-se para o processo narcísico, onde as pessoas
se tornam referências para si mesmas e para os demais. Em todo este processo há uma busca de respostas
imediatas na tentativa
(de) que sejam definitivas, pois as pessoas têm dificuldade de compreender que a identidade é um processo em
construção.
É essa busca de respostas instantâneas que, tão logo pareçam
suprir as necessidades imediatas, são abandonadas, ou mesmo descartadas, se
reproduz em muitas coisas do cotidiano. Tornamo-nos
assim, uma sociedade do instantâneo e do descartável.
O Instantâneo e o Descartável
Isto se manifesta especialmente em nossas relações com as coisas. Vivemos na era dos bens descartáveis e dos serviços instantâneos. Lenços, guardanapos, copos e fraldas descartáveis, para não mencionar uma infinidade de coisas, substituíram lenços e guardanapos de pano, copos de vidro e fraldas (sim, isso mesmo) de tecido de algodão.
Ao mesmo tempo queremos
as coisas na velocidade do pensamento: comida rápida (fast-food),
dinheiro sacado instantaneamente (caixas 24 horas), transações comerciais
feitas com um clique, celulares que nos permitem falar com quem quisermos a
qualquer hora (é impossível não ser localizado) e milhares de outras coisas que
tornaram nossa vida instantânea.
Mas o descartável
e o instantâneo se misturaram e
aí banalizamos tudo: comida servida em marmitex com talheres de plástico,
sanduíches em embalagens de papel (o isopor é démodé) e porque não, mensagens
de texto pelo celular, fotografias que nunca são reveladas (e diga-se de
passagem, para quê?). Realmente, o instantâneo e o descartável dominaram a
nossa vida, a nossa cultura e em muitos, até o pensamento e a personalidade.
E qual é o problema? Não é esse o caminho natural da evolução
humana? A resposta é simples – nós
transpomos nossas relações com as coisas para a nossa relação com as pessoas. Não é apenas uma tendência – é uma
realidade. É algo muito e completamente humano. E no instantâneo e no
descartável não há antes e nem há depois, pois o que importa é o momento
presente.
Muitos exemplos poderiam ser dados, mas ficarei apenas em um.
Todos conhecem a expressão ‘ficar’, que em nosso mundo (tão moderno) significa
simplesmente ter alguém para o momento, sem nenhum (absolutamente nenhum)
compromisso. Dirão alguns que isso ocorria no passado, mas esses se esquecem que
as pessoas evitavam fazer isso às claras ou deixar evidente para os demais,
especialmente para a pessoa envolvida. Hoje não, o ficar é uma troca consciente – ‘eu te uso e você me usa, mas não
queremos nada um com o outro’. A transferência foi total – é a completa e absoluta
banalização do instantâneo e descartável.
Poderíamos dizer que a facilidade e a rapidez dessas relações
levam a um esvaziamento e a uma superficialidade que confunde as pessoas e faz
com que elas percam o referencial da construção do eu? Seguramente, pois se por
um lado, cada um é o “eu em construção” e, por outro lado, somos
“descartáveis”, onde está a nossa importância? Esta perda de referenciais pode levar a uma anulação de
si próprio. Não é de se admirar que vivemos na época em que a crise da auto-estima é a
maior na história da humanidade. E
ainda assim, muitos se colocam como a medida de todas as coisas.(3)
Isso mostra a que ponto chegamos no esvaziamento das perspectivas para a
construção do eu.
Como proporcionar ambientes saudáveis de relações interpessoais
num mundo que perdeu os referenciais básicos na construção do eu? Como
incentivar alunos a interagirem para melhorar suas habilidades de trabalho em
equipe no mundo que transfere o instantâneo e descartável para os relacionamentos
interpessoais?
A complexidade das relações entre as pessoas numa interação
em grupos
O trabalho em grupo é bem exemplificado numa corrida de
revezamento: é necessário planejamento, preparo, responsabilidades individuais
e esforço de todos para a consecução das metas globais e individuais. Não se
pode esquecer nunca que os grupos são formados por pessoas e que não são apenas
grupos, são um conjunto de relações entre as pessoas.
Estranho é que a sociedade de uma forma geral e a mídia de forma
particular não enfatizam a busca coletiva, mas sim a individual, com destaque
para o estrelato (ou estrelismo). No grupo enquanto um mecanismo de cooperação
e ganhos conjuntos não deve haver uma busca de estrelato ou preponderância,
onde o próprio conceito de estrelato é equivocado (uma estrela não brilha
sozinha no céu). Sempre há espaço para todos (muitas estrelas brilham juntas).
Um claro exemplo disso ocorreu em maio de 1995 quando a mídia tentava destacar
o feito de Waldemar Niclevicz ao atingir o cume do monte Everest, como o
primeiro brasileiro a escalar a montanha mais alta da Terra. Na verdade,
Waldemar Niclevicz estava acompanhado de outro brasileiro, Mozart Catão. Como
se percebe, parecia aos olhos da imprensa e da TV que seria mais heroico e
glorioso destacar o feito de um só (4). Logo, não é positivo o papel da mídia
na construção das identidades e das relações entre as pessoas no grupo.
Numa sociedade que coloca o hedonismo como um valor aceitável (5)
e desmerece os esforços de muitos para destacar a realização de uns poucos, a
consequência natural é ver as pessoas fechando os olhos para quem está ao seu
lado e deixando de perceber o sofrimento alheio. Construir relações é exatamente
o contrário: é ver no outro de fato um semelhante. Tudo aquilo que pode ser
positivo no trabalho em grupo, pode, e deve ser maximizado pelos que incentivam
o trabalho em equipes e grupos. É necessário trabalhar as potencialidades de
cada um. Dentro e além do aspecto cognitivo é necessário desenvolver as
capacidades analíticas, argumentativas, reflexivas e críticas. Estas podem ser
trabalhadas para que se desenvolva um exercício permanente da democracia, da
cidadania e da ética.
Na construção das relações e na construção da identidade pessoal é
necessário ver e ter consciência de que os esforços fazem sentido. Ver de que
forma a vida e as relações fazem sentido. E este senso depende de valores
estáveis: nossos referencias de vida, de história. O que nos leva a ter
segurança no que é certo e errado e estar pronto a decidir.
Trabalhar em grupo é sobretudo construir relações com os demais e
assim, estabelecer também valores seguros para a construção da própria
personalidade. Não há dúvidas de que ocorre uma construção da própria
identidade nas relações de grupo.
Ervin Goffman , que foca seus estudos nas relações entre as
pessoas nos grupos sociais afirma que ‘atuamos’ como se fôssemos atores em um
palco (6). E acabamos mais desenvolvendo efeitos dramáticos do que atitudes.
Esta é uma abordagem interessante numa análise do trabalho em grupos em sala de
aula. Até que ponto estaremos sendo autênticos em nossas relações
interpessoais? E o que de fato vêm a ser autenticidade se todos somos assim?
Mas a sua afirmação de que as pessoas agem para ser aceitas é uma constante nos
grupos. Com isto mudam de postura e mesmo de atitudes. Algumas se apropriam do
papel de outras e desta forma, o importante é manter a fachada.
O grande risco aqui é a não preocupação moral com os próprios
padrões, e isto envolve o risco da aceitação formal e da vivência apenas dos
padrões visíveis, externos e não de fato, pessoais. Desta forma, as pessoas
ditam e vivem padrões e traços de identidade. (alguns destes, apenas
suposições).
Nas relações entre componentes dos grupos há ainda a questão dos
estigmas que carregamos e que influenciam diretamente a maneira como as pessoas
nos vêem e nos tratam. Influenciam também a maneira como nós tratamos os
demais. Muitas vezes o estigma é tão marcante, que as pessoas não olham para
uma “outra pessoa”, mas para o estigma que ela carrega. Ora, quanto mais se
tece na superfície aparente, mais frágeis os papéis que vivenciamos ficam por
baixo. É como insistir em construir uma casa sobre alicerces frágeis. Quanto
mais se insiste em avançar, maior é o risco de desmoronamento.
A solução está na figura do próprio docente (e dos líderes): ele
deve assumir o seu papel e ser uma referência de valores para seus alunos. John
Dewey dizia que “é pelo exemplo que aprende a humanidade, não aprenderão em
outra escola”.
Segundo Green (7), “o ensino cooperativo é a solução para uma
parte significativa dos problemas de ensino e aprendizagem” e “as técnicas do
ensino cooperativo, quando bem aplicadas, podem resgatar alunos considerados
sem chance e sociabilizar a turma” (8). Sua definição é de que o Ensino
Cooperativo (ou aprendizagem cooperativa) é uma proposta metodológica de
organização do trabalho da sala de aula com os alunos trabalhando em grupos de
estudo. Estes grupos recebem instruções dos professores e se interagem
positivamente para o progresso da aprendizagem e do relacionamento
interpessoal.
O problema central neste caso é analisar os alunos em interação e
as múltiplas interações dos alunos enquanto trabalham conjuntamente sob a
orientação do professor. A prática docente busca modelos consensuais e a ênfase
na cooperação é uma necessidade da educação conforme muitos autores, inclusive
Piaget (9):
“Conforme a cooperação substitui a coação, a criança dissocia seu
eu do pensamento de outro.” ... “Logo, cooperação é fator de personalidade, se
entendermos por personalidade ... o eu que se situa e se submete, para se fazer
respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva.” ... “Sendo a
cooperação, fonte de personalidade, na mesma ocasião, as regras deixam de ser
exteriores.”
Diversas pesquisas confirmam os aspectos positivos e a necessidade
de melhor analisarmos as inter-relações que ocorrem no funcionamento da
aprendizagem a partir dos grupos dentro da sala de aula e em vários ambientes de convivência coletiva. Se nenhum trabalho for feito no sentido de melhorar as relações entre os estudantes e, consequentemente, entre as pessoas, a pergunta feita há quase dois milênios, não terá uma resposta positiva.
Fontes:
(1) PIAGET, A Educação da Liberdade: Conferencia apresentada no
28º Congresso Suíço dos Professores em 8 de julho de 1944 em Berna, Suíça.
(2) Do livro The quest for
identity, de WHEELIS, Allen, citado por FISHMAN. Roseli. Professora da Faculdade de Educação da
USP.
(3) Richard Sennet, O declínio do homem público: tiranias da
intimidade.
(4) O próprio Waldemar, infelizmente, destaca em seu site este feito da mesma forma que a imprensa o fez. A menção a Catão é apenas periférica. (http://www.niclevicz.com.br/pag14.php)
(5) Konrad Lorenz em, A demolição do homem.
(6) Erving Goffman, A representação do eu na vida cotidiana; Estigma: notas sobre a manipulação da identidade; Manicômios, prisões e conventos.
(7) Andrews University, Michigan, USA.
(8) Green, William, Aulas do Mestrado em Educação, dez/jan 96/97, UNASP, Eng. Coelho - SP.
Imagens: http://paulllafoontes.blogspot.com/
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