quinta-feira, 27 de setembro de 2012

RELAÇÕES INTERPESSOAIS NO MUNDO ESVAZIADO PELO INSTANTÂNEO E DESCARTÁVEL

RELAÇÕES INTERPESSOAIS NO MUNDO ESVAZIADO PELO INSTANTÂNEO E DESCARTÁVEL

 Dr. Frank Viana Carvalho

Resumo
Tornamo-nos a sociedade do instantâneo e do descartável. Vivemos na era dos bens descartáveis e dos serviços instantâneos. Quase tudo que nos chega às mãos é descartável e ao mesmo tempo queremos as coisas na velocidade do pensamento. E qual é o problema? A resposta é simples – nós transpomos nossas relações com as coisas para a nossa relação com as pessoas.

Abstract
We have become a society of instant and disposable. We live in an age of disposable goods and services snapshots. Almost everything we get in our hands we throw them at the same time we want things at the speed of thought. And what is the problem? The answer is simple - we transpose our relations with things for our relationship with people.


Viver continuamente num contexto de relações interpessoais parece ser uma condição básica da natureza humana. Seja na família, na comunidade do bairro, do trabalho, do clube, da igreja e sobretudo da escola, interagimos continuamente com o outro. No caso da escola, relações entre alunos são reproduções do cotidiano em um contexto particularizado – quase uma ilha. Quando os professores lançam o desafio de que os alunos trabalhem em grupos, este gesto pedagógico mostra-nos uma clara intenção de potencializar estas relações, seja por motivá-los a crescer no aprendizado do trabalho em equipe, seja na busca conjunta da realização de uma tarefa.

Entretanto, esta não é uma prática rotineira, especialmente por demandar do professor o preparo e o planejamento para que não ocorra o contrário do que se pretendia. Em outras palavras, pretende-se que na escola, o aluno desenvolva habilidades que o ajudarão nas relações interpessoais no mundo fora da escola. Desta forma, trabalhos em grupos que ocorrem de forma organizada e produtiva, onde cada um cumpre a sua parte não são tão constantes na vida escolar. São muitas as dificuldades neste processo e um número razoável de docentes mantém os alunos num ensino individualizado e com poucas interações entre si.

No cotidiano fora da escola, há uma tendência natural ao agrupamento e à busca de realizações conjuntas para uma grande variedade de tarefas. Fora da escola, como diz Piaget, “existe a vida, e na vida, existem os amigos e as relações sociais entre crianças.” Para ele é “nesta atmosfera de cooperação que se desenvolve a autonomia.” E logo em seguida o mesmo autor pergunta: “Por que a escola não tiraria então proveito destas possibilidades que revela o estudo psicológico do desenvolvimento moral e social das crianças. Aqui ainda, isto depende antes de tudo da atitude do professor.”(1)

Relações interpessoais são construções de identidades

O que ocorre, neste caso, e estamos falando de relações interpessoais, é a constante busca da escola para adequar-se aos mecanismos sociais da atualidade e porque não dizer, da modernidade. Mas esta busca esbarra numa profunda frustração para a escola ao não conseguir o sucesso almejado, ou consegui-lo apenas de forma parcial. Soma-se a isto o próprio ser humano em busca da sua identidade. Para onde vais? Essa era uma pergunta que denotava na antiga Roma um sentido de rumo para a vida, no sentido de construção desse rumo. É a construção de si próprio. Esse quo vadis mostra uma busca inconsciente que é uma constante na vida do adulto, mas será também nas crianças em idade escolar? Com certeza.

Não estaríamos tentando dar uma explicação psicológica a uma simples questão do cotidiano das instituições (neste caso, da escola)? Talvez. Aqui poderíamos afirmar como Fischmann e Wheelis (2) que, ao mesmo tempo em que há uma profunda insatisfação das pessoas na sua busca, há também um excesso de psicologização na tentativa de resolver e explicar os problemas.

Esse processo, no entanto, não é algo que ocorre de forma metódica, sistemática e, com isso diversas rupturas nessas tentativas de explicação da natureza humana e seu processo de construção. A sensação de descontinuidades leva a uma busca individual, com explicações para tudo – logo há também uma exacerbação da crença no próprio indivíduo. Neste contexto, onde muitas pessoas (quase todos) supõem saber analisar o comportamento, caminha-se para o processo narcísico, onde as pessoas se tornam referências para si mesmas e para os demais. Em todo este processo há uma busca de respostas imediatas na tentativa (de) que sejam definitivas, pois as pessoas têm dificuldade de compreender que a identidade é um processo em construção.

É essa busca de respostas instantâneas que, tão logo pareçam suprir as necessidades imediatas, são abandonadas, ou mesmo descartadas, se reproduz em muitas coisas do cotidiano. Tornamo-nos assim, uma sociedade do instantâneo e do descartável.

O Instantâneo e o Descartável

Isto se manifesta especialmente em nossas relações com as coisas. Vivemos na era dos bens descartáveis e dos serviços instantâneos. Lenços, guardanapos, copos e fraldas descartáveis, para não mencionar uma infinidade de coisas, substituíram lenços e guardanapos de pano, copos de vidro e fraldas (sim, isso mesmo) de tecido de algodão.

Ao mesmo tempo queremos as coisas na velocidade do pensamento: comida rápida (fast-food), dinheiro sacado instantaneamente (caixas 24 horas), transações comerciais feitas com um clique, celulares que nos permitem falar com quem quisermos a qualquer hora (é impossível não ser localizado) e milhares de outras coisas que tornaram nossa vida instantânea.

Mas o descartável e o instantâneo se misturaram e aí banalizamos tudo: comida servida em marmitex com talheres de plástico, sanduíches em embalagens de papel (o isopor é démodé) e porque não, mensagens de texto pelo celular, fotografias que nunca são reveladas (e diga-se de passagem, para quê?). Realmente, o instantâneo e o descartável dominaram a nossa vida, a nossa cultura e em muitos, até o pensamento e a personalidade.

E qual é o problema? Não é esse o caminho natural da evolução humana? A resposta é simples – nós transpomos nossas relações com as coisas para a nossa relação com as pessoas. Não é apenas uma tendência – é uma realidade. É algo muito e completamente humano. E no instantâneo e no descartável não há antes e nem há depois, pois o que importa é o momento presente.

Muitos exemplos poderiam ser dados, mas ficarei apenas em um. Todos conhecem a expressão ‘ficar’, que em nosso mundo (tão moderno) significa simplesmente ter alguém para o momento, sem nenhum (absolutamente nenhum) compromisso. Dirão alguns que isso ocorria no passado, mas esses se esquecem que as pessoas evitavam fazer isso às claras ou deixar evidente para os demais, especialmente para a pessoa envolvida. Hoje não, o ficar é uma troca consciente – ‘eu te uso e você me usa, mas não queremos nada um com o outro’. A transferência foi total – é a completa e absoluta banalização do instantâneo e descartável.

Poderíamos dizer que a facilidade e a rapidez dessas relações levam a um esvaziamento e a uma superficialidade que confunde as pessoas e faz com que elas percam o referencial da construção do eu? Seguramente, pois se por um lado, cada um é o “eu em construção” e, por outro lado, somos “descartáveis”, onde está a nossa importância? Esta perda de referenciais pode levar a uma anulação de si próprio. Não é de se admirar que vivemos na época em que a crise da auto-estima é a maior na história da humanidade. E ainda assim, muitos se colocam como a medida de todas as coisas.(3) Isso mostra a que ponto chegamos no esvaziamento das perspectivas para a construção do eu.

Como proporcionar ambientes saudáveis de relações interpessoais num mundo que perdeu os referenciais básicos na construção do eu? Como incentivar alunos a interagirem para melhorar suas habilidades de trabalho em equipe no mundo que transfere o instantâneo e descartável para os relacionamentos interpessoais?


A complexidade das relações entre as pessoas numa interação em grupos

O trabalho em grupo é bem exemplificado numa corrida de revezamento: é necessário planejamento, preparo, responsabilidades individuais e esforço de todos para a consecução das metas globais e individuais. Não se pode esquecer nunca que os grupos são formados por pessoas e que não são apenas grupos, são um conjunto de relações entre as pessoas.

Estranho é que a sociedade de uma forma geral e a mídia de forma particular não enfatizam a busca coletiva, mas sim a individual, com destaque para o estrelato (ou estrelismo). No grupo enquanto um mecanismo de cooperação e ganhos conjuntos não deve haver uma busca de estrelato ou preponderância, onde o próprio conceito de estrelato é equivocado (uma estrela não brilha sozinha no céu). Sempre há espaço para todos (muitas estrelas brilham juntas). Um claro exemplo disso ocorreu em maio de 1995 quando a mídia tentava destacar o feito de Waldemar Niclevicz ao atingir o cume do monte Everest, como o primeiro brasileiro a escalar a montanha mais alta da Terra. Na verdade, Waldemar Niclevicz estava acompanhado de outro brasileiro, Mozart Catão. Como se percebe, parecia aos olhos da imprensa e da TV que seria mais heroico e glorioso destacar o feito de um só (4). Logo, não é positivo o papel da mídia na construção das identidades e das relações entre as pessoas no grupo.

Numa sociedade que coloca o hedonismo como um valor aceitável (5) e desmerece os esforços de muitos para destacar a realização de uns poucos, a consequência natural é ver as pessoas fechando os olhos para quem está ao seu lado e deixando de perceber o sofrimento alheio. Construir relações é exatamente o contrário: é ver no outro de fato um semelhante. Tudo aquilo que pode ser positivo no trabalho em grupo, pode, e deve ser maximizado pelos que incentivam o trabalho em equipes e grupos. É necessário trabalhar as potencialidades de cada um. Dentro e além do aspecto cognitivo é necessário desenvolver as capacidades analíticas, argumentativas, reflexivas e críticas. Estas podem ser trabalhadas para que se desenvolva um exercício permanente da democracia, da cidadania e da ética.

Na construção das relações e na construção da identidade pessoal é necessário ver e ter consciência de que os esforços fazem sentido. Ver de que forma a vida e as relações fazem sentido. E este senso depende de valores estáveis: nossos referencias de vida, de história. O que nos leva a ter segurança no que é certo e errado e estar pronto a decidir.

Trabalhar em grupo é sobretudo construir relações com os demais e assim, estabelecer também valores seguros para a construção da própria personalidade. Não há dúvidas de que ocorre uma construção da própria identidade nas relações de grupo.

Ervin Goffman , que foca seus estudos nas relações entre as pessoas nos grupos sociais afirma que ‘atuamos’ como se fôssemos atores em um palco (6). E acabamos mais desenvolvendo efeitos dramáticos do que atitudes. Esta é uma abordagem interessante numa análise do trabalho em grupos em sala de aula. Até que ponto estaremos sendo autênticos em nossas relações interpessoais? E o que de fato vêm a ser autenticidade se todos somos assim? Mas a sua afirmação de que as pessoas agem para ser aceitas é uma constante nos grupos. Com isto mudam de postura e mesmo de atitudes. Algumas se apropriam do papel de outras e desta forma, o importante é manter a fachada.

O grande risco aqui é a não preocupação moral com os próprios padrões, e isto envolve o risco da aceitação formal e da vivência apenas dos padrões visíveis, externos e não de fato, pessoais. Desta forma, as pessoas ditam e vivem padrões e traços de identidade. (alguns destes, apenas suposições).

Nas relações entre componentes dos grupos há ainda a questão dos estigmas que carregamos e que influenciam diretamente a maneira como as pessoas nos vêem e nos tratam. Influenciam também a maneira como nós tratamos os demais. Muitas vezes o estigma é tão marcante, que as pessoas não olham para uma “outra pessoa”, mas para o estigma que ela carrega. Ora, quanto mais se tece na superfície aparente, mais frágeis os papéis que vivenciamos ficam por baixo. É como insistir em construir uma casa sobre alicerces frágeis. Quanto mais se insiste em avançar, maior é o risco de desmoronamento.

A solução está na figura do próprio docente (e dos líderes): ele deve assumir o seu papel e ser uma referência de valores para seus alunos. John Dewey dizia que “é pelo exemplo que aprende a humanidade, não aprenderão em outra escola”.

Segundo Green (7), “o ensino cooperativo é a solução para uma parte significativa dos problemas de ensino e aprendizagem” e “as técnicas do ensino cooperativo, quando bem aplicadas, podem resgatar alunos considerados sem chance e sociabilizar a turma” (8). Sua definição é de que o Ensino Cooperativo (ou aprendizagem cooperativa) é uma proposta metodológica de organização do trabalho da sala de aula com os alunos trabalhando em grupos de estudo. Estes grupos recebem instruções dos professores e se interagem positivamente para o progresso da aprendizagem e do relacionamento interpessoal.

O problema central neste caso é analisar os alunos em interação e as múltiplas interações dos alunos enquanto trabalham conjuntamente sob a orientação do professor. A prática docente busca modelos consensuais e a ênfase na cooperação é uma necessidade da educação conforme muitos autores, inclusive Piaget (9):

“Conforme a cooperação substitui a coação, a criança dissocia seu eu do pensamento de outro.” ... “Logo, cooperação é fator de personalidade, se entendermos por personalidade ... o eu que se situa e se submete, para se fazer respeitar, às normas da reciprocidade e da discussão objetiva.” ... “Sendo a cooperação, fonte de personalidade, na mesma ocasião, as regras deixam de ser exteriores.”

Diversas pesquisas confirmam os aspectos positivos e a necessidade de melhor analisarmos as inter-relações que ocorrem no funcionamento da aprendizagem a partir dos grupos dentro da sala de aula e em vários ambientes de convivência coletiva. Se nenhum trabalho for feito no sentido de melhorar as relações entre os estudantes e, consequentemente, entre as pessoas, a pergunta feita há quase dois milênios, não terá uma resposta positiva.

Fontes:
(1) PIAGET, A Educação da Liberdade: Conferencia apresentada no 28º Congresso Suíço dos Professores em 8 de julho de 1944 em Berna, Suíça.
(2) Do livro The quest for identity, de WHEELIS, Allen, citado por FISHMAN. Roseli. Professora da Faculdade de Educação da USP.
(3) Richard Sennet, O declínio do homem público: tiranias da intimidade.
(4) O próprio Waldemar, infelizmente, destaca em seu site este feito da mesma forma que a imprensa o fez. A menção a Catão é apenas periférica. (http://www.niclevicz.com.br/pag14.php)
(5) Konrad Lorenz em, A demolição do homem.
(6) Erving Goffman, A representação do eu na vida cotidiana; Estigma: notas sobre a manipulação da identidade; Manicômios, prisões e conventos.
(7) Andrews University, Michigan, USA.
(8) Green, William, Aulas do Mestrado em Educação, dez/jan 96/97, UNASP, Eng. Coelho - SP.


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