CAPÍTULO
VII
CHILE
"Hay que
endurecerse, pero sin perder la ternura jamas". Ernestro Che Guevara
A última impressão que eu havia tido
dos postos fronteiriços chilenos é de que eles eram chatos e exigentes.
Imaginava que agora eles iriam criar uma burocracia danada para liberar a nossa
entrada ali. Pois, na minha passagem pelo Chile em 90, eles me fizeram esvaziar
a mala umas quatro vezes desde a minha entrada pela região de Mendoza até a
saída em Arica. E outro tanto na volta. Deixei o Márcio e o Binho de sobreaviso.
Dez minutos depois, sem nenhuma
burocracia, nosso carro e nós estávamos liberados para andar no Chile.
Incrível, pensei. Só uma explicação eu tinha naquele momento: final da era
Pinochet. Mais tarde, eu percebi que às vezes guardamos impressões dos lugares,
das pessoas e das coisas e usamos estas impressões para nos proteger. Não sei
do quê. Tudo isto se chama preconceito. O meu caiu por terra (em relação às
autoridades chilenas).
Atravessando os últimos trechos de
montanhas passamos às margens do lindo lago PUYEHUE, avançando até Osorno.
Demos uma parada para alinharmos as rodas e consertarmos o pneu furado. Dali
nos orientamos pelo mapa e verificamos que teríamos que seguir pela RUTA 5.
Essa rodovia corta o país de Sul a Norte (e vice-versa) e obviamente passa
pelos mais variados lugares e climas.
O Chile é um país muito bonito, e
por se estender desde o paralelo 18º até o 56º (latitude Sul) e ter a um lado o
oceano pacífico e do outro a Cordilheira dos Andes, tem todos os tipos de
paisagens e climas possíveis. Já havíamos estado em Punta Arenas e vivenciado
um pouco do clima temperado com influências polares. Punta Arenas, vale
mencionar, é a cidade do planeta que já sofre os efeitos do buraco na camada de
ozônio. Médicos e cientistas aconselham que nesta cidade as pessoas usem óculos
escuros no verão e não se exponham demasiado ao sol. Na prática isto é muito
fácil, pois a temperatura média anual está na casa dos 5 graus positivos.
Entramos na ruta 5 e logo começou um
temporal. Muita chuva. Muitos e muitos quilômetros sob chuva. Seguindo
para o norte tivemos que fazer um desvio
em Loncoche devido a uma ponte que caiu próximo a Pitrufquen. Paramos para
jantar em Temuco. Comemos carne, arroz, batatas fritas, alface e tomates,
parece que só faltava feijão. Delícia. Nossa última refeição tinha sido na Argentina
e a barriga já estava lá nas costas.
O alvo daquele dia era a cidade de
Chillan. Por volta das dez e meia da noite, chegamos e nos dirigimos a UAC6. Enquanto
entrávamos no campus da universidade percebemos uma movimentação anormal para
aquele horário. Logo um dos alunos após nos identificarmos, chamou o preceptor.
Com poucas palavras explicamos-lhe nossa viagem e nossos objetivos para aquela
noite.
Ele respondeu:
Bien, ahora sigam-me! (Bem, agora
sigam-me)
E fomos atrás dele sem saber direito
pra onde. Ele caminhou e parou do lado da quadra de esportes. Cruzou os braços
e seriamente ficou a olhar. Nós, que não estávamos entendo bulhufas, ficamos
olhando uns para os outros para tentar imaginar o que iria acontecer. De
repente, começaram a sair de dois diferentes dormitórios masculinos, vários
estudantes. Cada um trazia uma toalha na mão ( algumas molhadas e com um nó na
ponta ). A um sinal não sei de quem, começou a "briga". Deram
toalhadas uns nos outros até não poder mais. Boquiabertos, sem entender como
era possível uma cena daquelas em um colégio interno, olhamos para o preceptor.
No meio da sua seriedade pudemos ver um sorriso maroto. Logo, um aluno
brasileiro que veio ao nosso encontro, pôs-se a explicar o que estava
sucedendo:
- É o "Cátche"! Ocorre
todo final de semestre. E é liberado pelo preceptor. Só acaba quando um grupo
de estudantes de um dormitório coloca o outro para dentro.
E assim aconteceu. Não resistindo
mais às toalhadas um grupo "fugiu" rapidamente para o seu dormitório.
O outro grupo vibrou como quando se faz um gol. E todos foram dormir, pois no
dia seguinte começariam os exames.
Ainda à noite o Binho encontrou um
amigo com o qual havia cursado o Ensino Médio, o Maurício. A partir dali o jovem
passou a nos mostrar a Universidade e os aposentos onde deveríamos pernoitar.
Cedo, no 13º dia de viagem, conversamos com vários jovens de diferentes
nacionalidades que ali estudam. O baixo preço e a boa qualidade de ensino
atraem jovens de todas as partes do mundo: Austrália, Alemanha, Panamá,
Argentina, Peru, Brasil e outros 22 países. Realmente é uma Universidade
cosmopolita. Às onze da manhã, o Paulo, um outro brasileiro que encontramos,
nos levou até a Rádio FM da Universidade. Fomos muito bem recepcionados e demos
uma entrevista ao vivo que durou doze minutos. O nosso castelhano já estava um
pouco melhor após o treinamento no Uruguai e na Argentina.
Ao sairmos do colégio, um jovem
estudante de teologia pediu uma carona até Santiago. Tudo bem. Pegamos a
estrada e um dia melhor para viajarmos. No caminho o Márcio e eu gastamos mais
de uma hora numa discussão aparentemente inútil: " se o aumento da área de
atrito de um objeto sobre o solo influi na resistência do aumento ou diminuição
da velocidade deste objeto". Não vale a pena relembrar as conclusões que
tivemos. Logicamente, como estudante de engenharia, o Márcio deu-nos uma aula
naquela tarde. O rapaz que viajava conosco ficou surpreso ao ver o quão
acaloradamente cada um defendia a suas idéias. Este foi um aspecto bonito,
interessante e doloroso da nossa viagem: descobrir um pouco de cada um de nós.
No Chile já estávamos no final da nossa segunda semana de viagem e início da
terceira. Pouco a pouco, nós, que nos conhecíamos superficialmente, pudemos
aprofundar os laços de amizade. Eu conhecia melhor o Márcio, que era meu
companheiro de trabalho. E o Binho, havíamos viajado juntos de São Paulo a
Eldorado em outubro de 1992. No entanto, os dois só foram se conhecer durante a
nossa longa viagem.
Quando deixamos o rapaz em Santiago
já era noite e decidimos avançar até La Serena. Pegamos algumas montanhas e
mesmo à noite percebemos a mudança paulatina da vegetação. O deserto se
aproximava e o frio diminuía. Revezando ao volante, chegamos às quatro da manhã
em La Serena. Precisamente em frente à escola adventista da cidade. Dormimos
até às sete.
Nos fundos da Escola (bem no fundo)
ficavam duas casas. Uma delas era do ex-professor de teologia da Universidade
de Chillan e atualmente pastor da igreja adventista da cidade.
Saímos
amarrotados do carro e com nossa aparência e sotaque, creio que assustamos o
Sr. Eleodoro Castillo. Mas conseguimos desfazer a impressão inicial explicando
os objetivos da nossa viagem.
A família Castillo começava a se
preparar para ir à Igreja e nós nos unimos a eles. Tomamos um gostoso café da
manhã e lá fomos nós. Assistimos ao culto e no caminho de volta para casa
passamos na praia. Era a primeira vez em nossa viagem que víamos o oceano
Pacífico. Lindo. Como La Serena é uma cidade mais quente do que Valparaiso e
Vina Del Mar, Tornou-se o balneário preferido de grande parte dos chilenos.
Belas praias, areia branquinha, mas água fria. O Pacífico é assim na costa da
América do Sul: suas águas são muito frias.
Foi um dos almoços mais divertidos
da viagem o que tivemos na casa da família Castillo. Contamos nossas aventuras
e ouvimos da vida, das angústias e das vitórias daquelas pessoas tão amigas. O
auge foi quando falamos de sobrenomes. Quando o Binho falou que o dele era
Silva e que no Brasil era como "mato", ouvimos o sr. Eleodoro dizer:
- Aqui, é só levantar uma pedra e
sai cinco ou seis debaixo dela! Pode ser que não tivesse graça nenhuma mas
rimos quase cinco minutos ininterruptamente.
A tarde descansamos até às cinco e
depois fomos ao programa dos jovens na igreja. À noite, os jovens nos
convidaram para participar de uma atividade social. Cantamos e dançamos canções
de roda em castelhano. O Binho foi o que mais se divertiu, pois pelo menos duas
moças não tiravam os olhos de cima dele. Logo após esta divertida brincadeira
saímos pela cidade respondendo às muitas perguntas que os jovens faziam sobre o
Brasil. Trocamos os endereços para futuras correspondências e fomos descansar à
meia noite. Cedinho no 15º dia do Projeto América do Sul nos despedimos da
família Castillo e começamos a adentrar o famoso e temido deserto de Atacama.
A rala vegetação ia cada vez mais
cedendo o seu espaço para as pedras e a areia. Logo já estávamos sentindo o ar
cada vez mais seco daquele lugar. O deserto de Atacama é o deserto mais seco do
mundo. Ali, em vários locais, não se tem registro de chuva desde a chegada dos
espanhóis, há mais de quatrocentos e cinquenta anos. Na verdade nunca chove na
faixa litorânea da América do Sul, que vai desde La Serena até ao norte do
Peru. Em alguns lugares desta região já houve precipitações de chuva, mas não
de maneira intensa. E em algumas partes caiu uma garoa, embora seja meio rara.
Eles chamam a esta garoa de chuva.
Ao lado da pista uma paisagem
inóspita e monótona. Como estávamos no inverno do hemisfério Sul, havia um
pouco de umidade no ar por causa das muitas nuvens. Eu, que já havia passado
nesta região durante o verão de 90/91 sabia que estávamos encontrando uma
situação mais favorável. Naquela ocasião, minha esposa, minha filha e eu
tínhamos que colocar um lenço molhado próximo ao nariz para respirar um pouco
de umidade. Se não o fizéssemos, alguns pequenos e sensíveis vasos sanguíneos
do nariz poderiam se romper devido a baixa umidade. Paramos para filmar e tirar
fotos próximos a Antofagasta. O nosso "câmera man", o Binho, fez-nos
o favor de filmar pelas costas o Márcio e eu fazendo "xixi" em pleno
deserto. É lógico que o deserto oferecia, cenas melhores. E o pacífico também.
Ali, bem ao nosso lado, as águas tinham um quase indescritível tom esverdeado.
Aproximamos do mar como que atraídos por um encanto. Fortes ondas arrebentavam
nas rochas daquela praia de pedras.
Assentamo-nos um pouco e conversamos
sobre aquele trecho da nossa viagem. Um lugar tão lindo e tão desconhecido.
Coisa assim é que faz valer a pena uma viagem como esta. Cenas para se guardar
na memória e não esquecer nunca mais. Enquanto refletíamos sobre estes
detalhes, vimos entre as fendas das rochas inúmeros caranguejos. Alguns bem
grandes. Estávamos batendo papo bem em cima da casa deles.
A noite já começava a descer sobre
nós e seguimos para o norte. Em La Serena havíamos sido alertados para não
dirigir à noite devido a perigosa neblina do deserto. Nem ligamos. Estávamos
satisfeitos com o nosso avanço, pois dentro do nosso cronograma, havíamos
recuperado um dia "perdido" nas terras da Patagônia. Mas a neblina
surgiu lá pelas onze da noite. E que neblina. Nunca vimos nada igual. É como
uma parede. Não dá para enxergar nem cinco metros a frente do carro. Reduzimos
bruscamente a velocidade para meros trinta quilômetros por hora. Isto porque
estávamos em uma reta.
- Cara, isto aqui é assustador! -
Disse o Márcio, sem tirar os olhos da pista.
- É! Foi a única coisa que pude
dizer, espantado com a densa neblina, conhecida como "el manto". O Binho estava em seu profundo sono.
Naquele lugar, só nos conduzíamos pelas faixas da pista. Ultrapassagem? Nem
pensar. De repente víamos os faróis de um carro que vinha em direção contrária.
Não dava para saber se vinha longe ou perto. Nesta primeira etapa de neblina o
Márcio conduziu por cerca de quarenta minutos nestas péssimas condições. A
atenção tem que estar ao máximo e por ser à noite, tem que se forçar muito a
vista. É muito cansativo. Às vezes, a neblina dava uma pequena trégua. Quando
pequei a direção, enfrentei este tipo de neblina por mais de uma hora. E o
Binho também teve que dirigir um tempo nesta desconfortável situação.
A despeito das dificuldades do
caminho chegamos em Arica, a última cidade no extremo norte do Chile. O disco
da embreagem estava muito gasto e chiava em baixas rotações. Compramos um disco
novo e algumas borrachas para prender o escapamento que estava batendo em baixo
do assoalho do carro.
Após esses consertos necessários
dirigimo-nos ao porto. A cena que vimos foi marcante. Inúmeros pelicanos dividiam
espaço com os pescadores e barcos. O cheiro característico do porto de Arica
também é difícil de esquecer. Às vezes, algum pelicano mais atrevido, fazia um
voo rasante sobre a nossa cabeça. Como este pássaro possui uma grande
envergadura, tínhamos que tomar cuidado para não trombarmos com suas asas. A
presença dos pelicanos ali é um fato tão rotineiro que parecem ser ignorados
pelos pescadores.
Surge então nas águas um animal que
rouba a cena dos pelicanos: uma lontra. Entre um mergulho e outro pudemos ver
seu "show" entre os pelicanos. E com alguma dificuldade conseguimos
filmar alguns segundos da aparição da lontra.
Arica era uma cidade peruana, mas
com a guerra do pacífico no século passado, os chilenos conquistaram mais esse
pedaço do deserto. Embora esteja em um lugar tão inóspito, é uma cidade
progressista e agradável. Enquanto caminhávamos por suas ruas comprando
lembrancinhas, pudemos observar algumas construções mais antigas. A que mereceu
destaque foi o prédio da antiga ferrovia que ligava Arica a La Paz, capital da
Bolívia. Em frente àquele edifício estava a primeira locomotiva que fez o
trajeto completo.
Perto da hora do almoço
despedimo-nos do Chile e nos dirigimos para os trâmites fronteiriços na Aduana
do Peru.
6. UAC -
Universidad Adventista de Chillan