Cotas para os excluídos
Estava lendo sobre as cotas e coloco aqui minhas reflexões de um passado próximo...
Acho válida a ação afirmativa do movimento negro em prol das cotas nas Universidades públicas. Faço ênfase na ação do movimento e não na questão das cotas, pois sobre este assunto algumas questões necessitam ser bem delineadas para que não se crie o contrário do que se almeja.
Primeiramente os números. Inicialmente a cota pedida pelo movimento foi de 40% de reserva de vagas para estudantes negros (alguns representantes do movimento falaram em até 50%), depois mudada para 20%. Segundo o último censo (2000)[1], em dados publicados somente agora em 2002, 45,3% da população brasileira é formada por negros e pardos. (A palavra “pardo” é para mim uma completa “indefinição”.) Segundo dados oficiais, repetidos pela pesquisadora Fernanda Almeida, 5,2% da população brasileira é formada por negros e 40,3% por pardos. Na Folha de São Paulo, um articulista afirma que 11% da população brasileira é formada por negros. O Diário Popular[2] afirma que 9,5% da população é formada por negros. Finalmente, como última fonte de dados, volto-me para os dados do IBGE[3]: os brancos representam 53,8% da população, ao passo que os mestiços e mulatos (os “pardos”) são 39,1%, os negros 6,2%, os asiáticos 0,5% e os ameríndios 0,4%. A dificuldade das pesquisas em encontrar um número (de 6,2% a 11% - no caso dos afro-americanos) só vêm demonstrar a dificuldade de estabelecer uma determinação étnica precisa para a população brasileira.
Só para a nossa informação, os negros representavam em 1817, 52% da população brasileira. Com a intensa onda imigratória de europeus no final do século XIX e após um período de intensa miscigenação com os índios (cafuzos) e com os brancos (mulatos), os negros representavam em 1950, 11% da população do país[4]. Nos censos posteriores os itens referentes às raças foram reformulados em função da falta de uma definição precisa para uma parcela da população (relembrou: os “pardos”). Com a intensa miscigenação, os “pardos”, nas suas “colorações brasileiras” foram quebrando barreiras, sofrendo e superando preconceitos e dificultando estatísticas. O próprio termo raça é impreciso, associado à divisão da humanidade em diferentes grupos populacionais de acordo com o critério da descendência biológica comum (real ou suposta). Esta noção de raça como forma de classificação rígida ou sistema genético foi quase inteiramente abandonada e atualmente se reconhece que as raças humanas são subdivisões relativas.
Não vejo uma razão efetiva para confiarmos plenamente nos números citados, mas eles nos levam a ver esta questão do pedido das cotas de diferentes formas: 20% somente para os negros ou para os negros e os “pardos”? A cota vai garantir o acesso dos excluídos ou dos negros mais qualificados? Um sistema de cotas para negros incentivará outros grupos minoritários (não necessariamente no critério raça ou etnia) a também reivindicarem suas cotas (mulheres, índios, homossexuais, aidéticos)? O governo poderá atendê-los? Esta cota na Universidade garantirá o acesso aos mercados de trabalho?
Em nosso país, os grandes discriminados são de fato os pobres, como bem colocou Clóvis Rossi[5]. Mas não estamos com isso querendo atenuar a discriminação histórica que existe contra os negros (ainda mais quando são pobres). Isto para não falarmos em outros grupos discriminados em diferentes graus e em diferentes contextos – vou citar dois, para não ser cansativo: você já viu mulheres no alto escalão das empresas – e no Congresso Nacional (quantas?)?; você já viu “personagens” protestantes em novelas de TV (e eles são 15,4% da população)?
Sou a favor de políticas públicas que de fato eliminem os problemas buscando atingi-los na sua base e não paliativos que acentuem uma discriminação já existente. A ação afirmativa das cotas pode ser a evidenciação de uma discriminação – e isto, se por um lado cria uma porta de acesso, mantém ou até reforça o estigma do preconceito. Talvez seria interessante um sistema de cotas para os pobres: já imaginou isto com base no censo[6] – 95% das vagas nas Universidades Públicas para os pobres e para a classe média. Ei, espere um pouco, é melhor não colocar a classe média neste negócio, senão pode ocorrer alguma controvérsia. Melhor assim: 70% das vagas na Universidade Pública para os pobres. Interessante... cotas para os excluídos.
Colocando claramente minha posição: não creio que uma ação afirmativa resolveria o problema da discriminação. A verdadeira solução passa pela melhoria da educação e das demais condições sociais do povo em geral. É preciso melhorar a escola pública de ensino fundamental e médio, pois os que a freqüentam não têm condições de concorrer em situação de igualdade com os alunos das escolas particulares. E na mesma linha de ação aumentarmos o número de vagas nas universidades públicas. E mais, se devemos ter cotas, que elas sejam para os que já são excluídos de vários privilégios sociais: os pobres. Entretanto sei que outros pesquisadores se dividem ao analisar esta questão. É o caso de Rawls[7], que defende políticas de discriminação positiva, e por outro lado de Hayek[8], que não vê nisso uma solução, mas mesmo um novo problema. Há também os que pensam como o senador Antero Paes de Barros, cujo projeto de lei prevê a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para alunos da rede pública de ensino. Também temos os que preferem que se continue o atual sistema, que funciona na base da “meritocracia da desigualdade”. Os que passam nos atuais vestibulares das universidades públicas tem méritos para tal, mas sabemos que há uma grande desigualdade entre os concorrentes.
Com relação às cotas para os negros, acho que seria muito bom se, de fato, eles conseguissem em nível nacional, embora eu imagine que não será fácil. Isto deve levar o governo a repensar suas ações sociais e suas políticas, pois para com estes existe uma dívida histórica. No estado do Rio de Janeiro foi alcançada a primeira vitória do movimento: foi votada uma lei que garante 40% das vagas para negros e pardos nas universidades. Uma pesquisa feita entre os usuários da Folha Online e que teve a participação de 1588 pessoas, aponta que 75% (1195) são contra o sistema de cotas e que apenas 25% (393) se mostraram favoráveis.
Bem, escrevo estas coisas de dentro de uma Instituição de Ensino Superior, onde em 1999, 33% dos professores eram negros. Em 2000 este percentual subiu um pouco e foi para 37,5% e em 2001, mas, com o aumento do número global de professores, este percentual caiu para 16,6%. Mas se falarmos das outras etnias, ou dos gêneros, da formação, da origem ou da grande mistura que temos aqui, o assunto fica no mínimo, interessante. Somos 12 professores: 6 homens e 6 mulheres; dois especialistas, três mestrandos, cinco mestres e dois doutorandos. Sete USP, dois PUC e dois de outras Instituições. Sete católicos, três protestantes, uma espírita e uma sem religião. Seis casados, três solteiros, dois separados e um separado e casado de novo. As docentes: duas são negras e quatro são brancas (uma loira, duas meio loiras e uma morena). Os docentes: um é mulatinho, dois são brancos, dois são mais ou menos brancos, e eu, bem ... no meu caso é complicado. Tenho um bisavô português e uma bisavó negra. Mas na outra linha genealógica uma bisavó índia e um bisavô francês. Faltou falar dos outros bisavós: portugueses e mulatos. Não satisfeito, casei com uma estrangeira. Bem, eu acho que eu sou ... brasileiro.
[1] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Página oficial do IBGE na internet – www.ibge.gov.br - 09/05/02.
[2] Setembro de 2001.
[3] JT, citando dados oficiais do IBGE, 09/05/02, 16A.
[4] Delta Larousse, v. 2, p. 493.
[5] Folha de São Paulo, 28/08/01.
[6] Segundo dados só agora revelados do Censo 2000, 51,9% dos trabalhadores brasileiros ganha até R$ 400,00 por mês. Apenas 2,6% ganha acima de 20 salários mínimos – R$ 4.000,00 ou mais.
[7] “Sustenta o filósofo que a concepção relativamente igualitária de justiça distributiva que caracteriza a teoria política liberal se expressa no "princípio da diferença", segundo o qual as desigualdades econômicas e sociais devem ser compensadas pelo Estado, beneficiando os que se encontram em posições menos vantajosas.” Rawls, John. A Theory of Justice, Harvard University Press, 1971, in Luiza Helena Malta Moll, Adversus on line, nov. 99 - nº 54, Discriminações não autorizadas pela Constituição.
[8] Hayek põe dúvida na ação do Estado interferindo nas forças de mercado de modo a ajustá-las para algum ideal de igualdade, afirmando que se perderiam os efeitos benéficos em termos de eficiência e nos confrontaríamos com amplas desigualdades, em especial aquelas que secundariam os esforços para redução das desigualdades sócio-econômicas. Isto porque os indivíduos diferem em seus atributos como a capacidade, os quais o governo não pode alterar para assegurar-lhes a mesma posição material que, por sua vez, exige do governo que os trate diferentemente. F. A. Hayek. Os Fundamentos da Liberdade, Editora UnB, Pensamento Político vol 56, 1986.
Estava lendo sobre as cotas e coloco aqui minhas reflexões de um passado próximo...
Acho válida a ação afirmativa do movimento negro em prol das cotas nas Universidades públicas. Faço ênfase na ação do movimento e não na questão das cotas, pois sobre este assunto algumas questões necessitam ser bem delineadas para que não se crie o contrário do que se almeja.
Primeiramente os números. Inicialmente a cota pedida pelo movimento foi de 40% de reserva de vagas para estudantes negros (alguns representantes do movimento falaram em até 50%), depois mudada para 20%. Segundo o último censo (2000)[1], em dados publicados somente agora em 2002, 45,3% da população brasileira é formada por negros e pardos. (A palavra “pardo” é para mim uma completa “indefinição”.) Segundo dados oficiais, repetidos pela pesquisadora Fernanda Almeida, 5,2% da população brasileira é formada por negros e 40,3% por pardos. Na Folha de São Paulo, um articulista afirma que 11% da população brasileira é formada por negros. O Diário Popular[2] afirma que 9,5% da população é formada por negros. Finalmente, como última fonte de dados, volto-me para os dados do IBGE[3]: os brancos representam 53,8% da população, ao passo que os mestiços e mulatos (os “pardos”) são 39,1%, os negros 6,2%, os asiáticos 0,5% e os ameríndios 0,4%. A dificuldade das pesquisas em encontrar um número (de 6,2% a 11% - no caso dos afro-americanos) só vêm demonstrar a dificuldade de estabelecer uma determinação étnica precisa para a população brasileira.
Só para a nossa informação, os negros representavam em 1817, 52% da população brasileira. Com a intensa onda imigratória de europeus no final do século XIX e após um período de intensa miscigenação com os índios (cafuzos) e com os brancos (mulatos), os negros representavam em 1950, 11% da população do país[4]. Nos censos posteriores os itens referentes às raças foram reformulados em função da falta de uma definição precisa para uma parcela da população (relembrou: os “pardos”). Com a intensa miscigenação, os “pardos”, nas suas “colorações brasileiras” foram quebrando barreiras, sofrendo e superando preconceitos e dificultando estatísticas. O próprio termo raça é impreciso, associado à divisão da humanidade em diferentes grupos populacionais de acordo com o critério da descendência biológica comum (real ou suposta). Esta noção de raça como forma de classificação rígida ou sistema genético foi quase inteiramente abandonada e atualmente se reconhece que as raças humanas são subdivisões relativas.
Não vejo uma razão efetiva para confiarmos plenamente nos números citados, mas eles nos levam a ver esta questão do pedido das cotas de diferentes formas: 20% somente para os negros ou para os negros e os “pardos”? A cota vai garantir o acesso dos excluídos ou dos negros mais qualificados? Um sistema de cotas para negros incentivará outros grupos minoritários (não necessariamente no critério raça ou etnia) a também reivindicarem suas cotas (mulheres, índios, homossexuais, aidéticos)? O governo poderá atendê-los? Esta cota na Universidade garantirá o acesso aos mercados de trabalho?
Em nosso país, os grandes discriminados são de fato os pobres, como bem colocou Clóvis Rossi[5]. Mas não estamos com isso querendo atenuar a discriminação histórica que existe contra os negros (ainda mais quando são pobres). Isto para não falarmos em outros grupos discriminados em diferentes graus e em diferentes contextos – vou citar dois, para não ser cansativo: você já viu mulheres no alto escalão das empresas – e no Congresso Nacional (quantas?)?; você já viu “personagens” protestantes em novelas de TV (e eles são 15,4% da população)?
Sou a favor de políticas públicas que de fato eliminem os problemas buscando atingi-los na sua base e não paliativos que acentuem uma discriminação já existente. A ação afirmativa das cotas pode ser a evidenciação de uma discriminação – e isto, se por um lado cria uma porta de acesso, mantém ou até reforça o estigma do preconceito. Talvez seria interessante um sistema de cotas para os pobres: já imaginou isto com base no censo[6] – 95% das vagas nas Universidades Públicas para os pobres e para a classe média. Ei, espere um pouco, é melhor não colocar a classe média neste negócio, senão pode ocorrer alguma controvérsia. Melhor assim: 70% das vagas na Universidade Pública para os pobres. Interessante... cotas para os excluídos.
Colocando claramente minha posição: não creio que uma ação afirmativa resolveria o problema da discriminação. A verdadeira solução passa pela melhoria da educação e das demais condições sociais do povo em geral. É preciso melhorar a escola pública de ensino fundamental e médio, pois os que a freqüentam não têm condições de concorrer em situação de igualdade com os alunos das escolas particulares. E na mesma linha de ação aumentarmos o número de vagas nas universidades públicas. E mais, se devemos ter cotas, que elas sejam para os que já são excluídos de vários privilégios sociais: os pobres. Entretanto sei que outros pesquisadores se dividem ao analisar esta questão. É o caso de Rawls[7], que defende políticas de discriminação positiva, e por outro lado de Hayek[8], que não vê nisso uma solução, mas mesmo um novo problema. Há também os que pensam como o senador Antero Paes de Barros, cujo projeto de lei prevê a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para alunos da rede pública de ensino. Também temos os que preferem que se continue o atual sistema, que funciona na base da “meritocracia da desigualdade”. Os que passam nos atuais vestibulares das universidades públicas tem méritos para tal, mas sabemos que há uma grande desigualdade entre os concorrentes.
Com relação às cotas para os negros, acho que seria muito bom se, de fato, eles conseguissem em nível nacional, embora eu imagine que não será fácil. Isto deve levar o governo a repensar suas ações sociais e suas políticas, pois para com estes existe uma dívida histórica. No estado do Rio de Janeiro foi alcançada a primeira vitória do movimento: foi votada uma lei que garante 40% das vagas para negros e pardos nas universidades. Uma pesquisa feita entre os usuários da Folha Online e que teve a participação de 1588 pessoas, aponta que 75% (1195) são contra o sistema de cotas e que apenas 25% (393) se mostraram favoráveis.
Bem, escrevo estas coisas de dentro de uma Instituição de Ensino Superior, onde em 1999, 33% dos professores eram negros. Em 2000 este percentual subiu um pouco e foi para 37,5% e em 2001, mas, com o aumento do número global de professores, este percentual caiu para 16,6%. Mas se falarmos das outras etnias, ou dos gêneros, da formação, da origem ou da grande mistura que temos aqui, o assunto fica no mínimo, interessante. Somos 12 professores: 6 homens e 6 mulheres; dois especialistas, três mestrandos, cinco mestres e dois doutorandos. Sete USP, dois PUC e dois de outras Instituições. Sete católicos, três protestantes, uma espírita e uma sem religião. Seis casados, três solteiros, dois separados e um separado e casado de novo. As docentes: duas são negras e quatro são brancas (uma loira, duas meio loiras e uma morena). Os docentes: um é mulatinho, dois são brancos, dois são mais ou menos brancos, e eu, bem ... no meu caso é complicado. Tenho um bisavô português e uma bisavó negra. Mas na outra linha genealógica uma bisavó índia e um bisavô francês. Faltou falar dos outros bisavós: portugueses e mulatos. Não satisfeito, casei com uma estrangeira. Bem, eu acho que eu sou ... brasileiro.
[1] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Página oficial do IBGE na internet – www.ibge.gov.br - 09/05/02.
[2] Setembro de 2001.
[3] JT, citando dados oficiais do IBGE, 09/05/02, 16A.
[4] Delta Larousse, v. 2, p. 493.
[5] Folha de São Paulo, 28/08/01.
[6] Segundo dados só agora revelados do Censo 2000, 51,9% dos trabalhadores brasileiros ganha até R$ 400,00 por mês. Apenas 2,6% ganha acima de 20 salários mínimos – R$ 4.000,00 ou mais.
[7] “Sustenta o filósofo que a concepção relativamente igualitária de justiça distributiva que caracteriza a teoria política liberal se expressa no "princípio da diferença", segundo o qual as desigualdades econômicas e sociais devem ser compensadas pelo Estado, beneficiando os que se encontram em posições menos vantajosas.” Rawls, John. A Theory of Justice, Harvard University Press, 1971, in Luiza Helena Malta Moll, Adversus on line, nov. 99 - nº 54, Discriminações não autorizadas pela Constituição.
[8] Hayek põe dúvida na ação do Estado interferindo nas forças de mercado de modo a ajustá-las para algum ideal de igualdade, afirmando que se perderiam os efeitos benéficos em termos de eficiência e nos confrontaríamos com amplas desigualdades, em especial aquelas que secundariam os esforços para redução das desigualdades sócio-econômicas. Isto porque os indivíduos diferem em seus atributos como a capacidade, os quais o governo não pode alterar para assegurar-lhes a mesma posição material que, por sua vez, exige do governo que os trate diferentemente. F. A. Hayek. Os Fundamentos da Liberdade, Editora UnB, Pensamento Político vol 56, 1986.
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