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“Assim como os reis são constituídos pelo povo, parece definitivamente resultar que todo o povo é mais poderoso que o rei. Pois tal é a força do mundo: aquele que é constituído por outro é mantido como menor, e aquele que recebe sua autoridade de outro é inferior ao seu designador.”
“Assim como os reis são constituídos pelo povo, parece definitivamente resultar que todo o povo é mais poderoso que o rei. Pois tal é a força do mundo: aquele que é constituído por outro é mantido como menor, e aquele que recebe sua autoridade de outro é inferior ao seu designador.”
Esse é um dos vários argumentos contra o poder real desferidos pelo livro Vindiciae Contra Tyrannos – O Direito de Resistir, publicado em 1579, na Basileia, e lançado pela primeira vez no Brasil, em março passado, pela Editora Discurso – ligada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Publicado sob o pseudônimo de Stephanus Junius Brutus, o livro surgiu no contexto das Guerras de Religião na França, no século 16, deflagradas pelo chamado Massacre da Noite de São Bartolomeu – conflito iniciado em 23 de agosto de 1572, em Paris, em que milhares de protestantes foram mortos por católicos incitados pela família real, que era católica.
A edição brasileira é resultado de quase duas décadas de trabalho do professor Frank Viana Carvalho, que se dedicou a traduzir e analisar a obra nos cursos de mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia, concluídos na FFLCH. “É o coroamento de um longo processo de pesquisa sobre o movimento de um grupo de intelectuais de tradição protestante chamados de monarcômanos e que se destacaram na França no período das Guerras de Religião, principalmente no final do século 16”, escreve no prefácio da edição o professor Milton Meira do Nascimento, do Departamento de Filosofia da FFLCH.
Ao lado da tradução para o português, a edição brasileira de Vindiciae Contra Tyrannos traz vários textos de Frank Carvalho, em que o professor mostra o contexto histórico em que a obra surgiu, analisa cada parte do livro e aborda outros textos antiabsolutistas do período. Além disso, traz um estudo em que Carvalho defende que o verdadeiro autor do livro, escondido sob o pseudônimo de Stephanus Junius Brutus, é Philippe de Mornay, diplomata, político, jurista e teólogo protestante. “Pode parecer pretensioso, mas nossa busca nos direciona a uma conclusão: tudo indica que Philippe Du Plessis-Mornay foi o autor principal das Vindiciae Contra Tyrannos e, na perspectiva moderna, ele deve ser considerado como o autor da prestigiada obra”, escreve Carvalho.
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Antimaquiavelismo
Vindiciae Contra Tyrannos está dividido em quatro partes, cada uma delas dedicada a investigar uma questão. A primeira parte discute a questão “Se os súditos estão destinados ou devem obedecer aos príncipes que ordenam qualquer coisa contra a lei de Deus”. Na segunda parte, trata-se de analisar se é lícito resistir a um príncipe que deseja cancelar a lei de Deus e assolar a igreja. Já a terceira parte, a mais extensa, se dedica à questão “Se, e em que extensão, é lícito resistir a um príncipe que está arruinando a comunidade – também por quem, como e por que direito isso pode ser permitido”. Finalmente, na quarta parte é debatido se os príncipes vizinhos podem prestar assistência aos súditos de outros príncipes que estejam sendo perseguidos por causa da religião.
“Buscando apresentar as ideias estabelecidas nas Vindiciae como um padrão para os soberanos, ele busca mostrar claramente qual é e qual deve ser o direito e o dever do príncipe em relação ao povo e deste em relação ao príncipe, e que esses deveres mútuos e recíprocos são distintos uns dos outros”, analisa Frank Carvalho. “Além de ser um tratado antimaquiaveliano, Mornay apresentará aos seus leitores uma nova proposta política, inteiramente construída numa base pactual.”
De acordo com Carvalho, o antimaquiavelismo aparece desde o início do livro. Ali, o autor das Vindiciae afirma que sua obra se volta contra os “conselhos viciosos e doutrinas falsas de Nicolau Maquiavel”, identificado como causador de muitos males para a sociedade. “Maquiavel era um autor conhecido na segunda metade do século 16 e certamente influenciou vários líderes na arte de governar”, afirma o professor. “Ora, se a literatura de Maquiavel alcançou e influenciou príncipes e nobres, o autor das Vindiciae espera também influenciá-los.”
Carvalho aponta outras diferenças entre o autor das Vindiciae e Maquiavel. “Se O Príncipe dava ênfase ao uso que se faz do poder, as Vindiciae enfatizam o poder como um cumprimento de obrigações pactuais ou contratadas. Ao passo que Maquiavel argumenta, numa passagem célebre, que, se um príncipe não pode ser nem amado nem temido, então é muito mais seguro ser temido do que amado, Mornay vai na outra direção: ‘Inversamente, não há nada mais apropriado para proteger os recursos do reino do que ser amado, porque a boa vontade é fiel na perpetuidade’.” E Carvalho observa: “Assim, indiretamente, um pouco aqui e ali, ele vai contradizendo o florentino ao construir sua proposta antiabsolutista”.
Vindiciae Contra Tyrannos – O Direito de Resistir, de Stephanus Junius Brutus, tradução, comentários e edição de Frank Viana Carvalho, Discurso Editorial, 463 páginas.
Fonte:
https://jornal.usp.br/cultura/editora-discurso-lanca-obra-classica-contra-o-absolutismo/
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